Quantos traumatismos são precisos para desenvolver encefalopatia traumática crônica? Que tipo de trauma oferece mais risco? Qual o tempo de repouso indicado para reduzir as chances da doença? Essas são algumas das perguntas ainda não respondidas sobre a condição incurável que provocou a morte de Maguila, aos 66 anos, na última quinta-feira (24). Por isso, a análise do cérebro do ex-pugilista é considerada muito importante para o avanço dos estudos sobre o tema.
Maguila decidiu doar seu cérebro à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em 2018. A instituição conta com um Biobanco para Estudos no Envelhecimento (BEE), onde pesquisadores têm um projeto para investigar os efeitos da doença degenerativa, que tem como principal fator de risco o histórico de traumatismo craniano de repetição. Isso ocorre em atletas de esportes de contato, como futebol, boxe e rúgbi.
Pesquisadora assistente do BEE, a neurologista Roberta Diehl explica que o local existe há 20 anos e tem como foco estudar doenças degenerativas — como Alzheimer e Parkinson — e alterações no cérebro decorrentes do envelhecimento. Além do projeto envolvendo a encefalopatia traumática crônica, o biobanco recebe doações de órgãos “saudáveis” diretamente do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), que fica no mesmo prédio da universidade.
No total, o biobanco já coletou mais de quatro mil cérebros. Entretanto, especificamente para análises envolvendo a encefalopatia traumática crônica, há apenas outros dois órgãos: o do ex-boxeador Éder Jofre e o do ex-jogador de futebol Luís Bellini.
— Quando a família chega para reclamar o corpo tem essa equipe que aborda e explica que existe um estudo na universidade. Se essa família aceita doar, tem uma entrevista e segue o processo. Casos como o do Maguila, do Éder e do Bellini são fora do que é a nossa rotina, são casos bem atípicos. Geralmente, depois desses casos, começamos a receber ligações de pessoas querendo doar em vida, mas não é assim — esclarece Roberta.
Como funcionam as análises
De acordo com a pesquisadora, o médico assistente que acompanhava Maguila foi o responsável pelo contato para informar sobre a vontade do ex-pugilista de doar seu cérebro para o estudo. Após a morte, Roberta foi a responsável por auxiliar a família com os trâmites para fazer o translado do corpo até o Serviço de Verificação de Óbitos.
A neurologista ressalta que a extração deve ser feita dentro de 24 horas após a morte do doador para que se possa realizar a análise neuropatológica. Após extraído, o órgão recebe um código de identificação, para que não seja identificado com o nome da pessoa que doou.
— O encéfalo foi extraído na quinta-feira (24) e hoje está no laboratório da Faculdade de Medicina da USP. Lá, vai ficar armazenado, imerso em uma solução de paraformaldeído por três semanas. É uma solução que vai preparar esse cérebro para que possamos processar o material e fazer a análise histológica. A solução faz com que a decomposição do cérebro pare, então vai preservar esse material — comenta Roberta.
Depois desse período, os pesquisadores retiram amostras de áreas de interesse para estudos de doenças neurodegenerativas - não apenas para a encefalopatia traumática crônica, também para Alzheimer, Parkinson e outras. Na sequência, essas áreas são processadas em um equipamento e, posteriormente, emblocadas em parafina.
Em seguida, é realizada a imuno-histoquímica das lâminas histológicas e, por fim, os pesquisadores podem fazer a análise microscópica do material. Conforme Roberta, nessa etapa é verificado se há alguma alteração ou alguma proteína no cérebro que não estava funcionando corretamente. O material remanescente do órgão permanece guardado no laboratório, imerso na mesma solução do início do processo.
Importância dos estudos
Renata Leite, coordenadora do Biobanco para Estudos no Envelhecimento, afirma que a pesquisa sobre encefalopatia traumática crônica começou há cerca de 10 anos, quando o médico assistente que atendia o ex-jogador Bellini entrou em contato e pediu auxílio para confirmar o diagnóstico da doença.
— Até então, não era um projeto de pesquisa, foi uma parceria que fizemos, porque você só consegue ter certeza (do diagnóstico) dessa patologia quando olha o cérebro no microscópio. O diagnóstico clínico é sugestivo, não definitivo. Para ter certeza, precisa coletar esse cérebro, fazer lâminas e olhar no microscópio — destaca Renata.
A doação de Bellini foi a primeira e, anos depois, teve a de Jofre — dando origem definitiva à linha de pesquisa. A coordenadora salienta que as doações não são muito comuns e que, apesar dos muitos avanços no conhecimento sobre a doença nos últimos 20 anos, ainda há várias perguntas a serem respondidas.
— Ainda estamos entendendo melhor a doença, mas provavelmente ela ocorra por causa de traumas repetitivos, quando não tem um tempo entre um trauma e outro para o cérebro se recuperar. E aí, esse trauma repetitivo e constante provavelmente é o responsável por causar essas lesões no cérebro. E aí na lâmina, quando olhamos, tem acúmulo de uma proteína chamada TAU, que se acumula ao redor do vaso.
Conforme Renata, não se sabe, por exemplo, se a condição pode ser definida como rara ou é apenas subnotificada, devido às dificuldades no diagnóstico. Os sintomas também não são bem estabelecidos: alguns pacientes manifestam sintomas clínicos de memória e, outros, de comportamento.
— Por que um paciente tem um tipo de sintoma clínico e o outro tem outro tipo? Será que é o lugar onde essa proteína está depositada? Será que é o lugar onde esse trauma acontece na cabeça que vai determinar esses diferentes sintomas? Então, ainda temos muitas perguntas, por isso que são importantes essas doações — enfatiza a coordenadora do biobanco.
Também é preciso que haja diferentes perfis de atletas para definir as frequências e intensidades de traumas geram a doença. Para as pesquisadoras, essas respostas são fundamentais para que se possa desenvolver estratégias para prevenir a encefalopatia traumática crônica e melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
— O objetivo é poder conhecer melhor a doença e o que coloca esses atletas em risco. O que expõe um atleta a um risco maior, que tipo de atividade, que tipo de impacto. E poder contribuir para desenvolver políticas de prevenção da doença, para reduzir a gravidade ou retardar o início dos sintomas, porque não existe tratamento até então e só conhecendo melhor o que acontece no cérebro realmente que vamos poder desenvolver alguma medicação que seja eficaz — finaliza Roberta.