Quando Dércio Staudt começou a ser preparado para um transplante de medula óssea, na última semana de abril, não imaginava que o Rio Grande do Sul enfrentaria sua maior tragédia climática poucos dias depois. Tampouco que seria preciso uma verdadeira força-tarefa para fazer com que o material biológico vindo do Canadá chegasse a tempo ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), onde estava internado.
Quando a medula doada saiu da América do Norte, em 6 de maio, o Aeroporto Internacional Salgado Filho já estava fechado e havia dezenas de bloqueios em rodovias pelo Estado. O material só chegou à capital gaúcha no dia seguinte, após passar por São Paulo, Santa Catarina e Canoas. Assim, no início da tarde de 8 de maio, a espera de um ano e meio do paciente de Ivoti acabou.
— Aqui no Estado, não tinha ninguém que pudesse doar. E depois, em todo o Brasil, também não tinha. Então, conseguiram no Canadá, um jovem de 20 anos doou e no dia 8 de maio eu recebi a medula. (Quando contaram sobre a logística), a gente não parava de agradecer. Foi uma alegria muito grande, a equipe médica se esforçou muito. Foi difícil, mas conseguimos — conta o aposentado de 66 anos, diagnosticado com leucemia mieloide aguda e presente na lista de transplante desde novembro de 2022.
O empenho e a cooperação entre equipes de saúde garantiram que, assim como Staudt, outras 81 pessoas passassem por transplantes de coração, pulmão, fígado, rim e córneas em hospitais do Rio Grande do Sul naquele mês. De toda forma, houve uma redução de 41% quando comparado a abril, quando foram feitas 138 cirurgias desse tipo.
O transplante de rim foi o mais impactado pela dificuldade de logística: a queda foi de 43,9% entre abril e maio. As córneas tiveram uma redução parecida, mas representaram o maior número de cirurgias naquele mês (48), porque toda a distribuição foi feita na macrorregião do Rio Grande do Sul, portanto, não foram necessários grandes deslocamentos, ressalta Sandra Coccaro, chefe da Divisão dos Transplantes da Secretaria Estadual de Saúde (SES-RS):
— A causa de toda essa baixa no número de transplantes realmente foi a malha aérea, que ficou muito prejudicada. E entendemos por que os rins tiveram essa queda tão significativa: 40% desses órgãos que recebemos vêm da Central Nacional de Transplantes. No momento em que o Salgado Filho ficou completamente inundado, não dispomos mais do nosso aeroporto internacional.
Para continuar realizando essas operações, foi preciso utilizar locais alternativos, como a Base Aérea de Canoas e o Aeroporto Regional Hugo Cantergiani, em Caxias do Sul. O Estado também recorreu a um serviço privado, que pode ser contratado quando não há batalhão disponível. Para esses voos, há pistas em Viamão e em Eldorado do Sul.
— Temos em Eldorado uma nova pista da Uniair que está também operando com aviões. Na época da enchente, estávamos mais com helicópteros, que poderiam baixar em lugares estratégicos. Agora, com a melhora de todo o quadro climático, continuamos operando com a Uniair em Eldorado e em Viamão, e operando com o batalhão aeroviário para voos internos na pista de Caxias e os voos comerciais estão descendo em Canoas — explica Sandra.
Impacto nos hospitais
Roberto Manfro, chefe do Serviço de Transplantes do HCPA, comenta que a instituição ficou 20 dias sem receber nenhuma oferta para transplante de rins com doador falecido. De acordo com ele, 2024 vinha sendo um ótimo ano em termos de números de cirurgias desse tipo. Em maio, a queda foi de 50% na comparação com os meses anteriores — isso significa que, nos últimos 10 dias do mês, se conseguiu fazer a metade das operações que se vinha fazendo antes.
— Então, conseguimos recuperar um pouquinho. Mas foi uma logística diferente, por exemplo, todos os transplantes renais no HCPA foram feitos a partir de doações aqui do RS, não teve nenhum com doador de fora do Estado. E, naquele momento, a Central de Transplantes montou uma espécie de força-tarefa para conseguir viabilizar que as doações se transformassem em órgãos prontos para serem transplantados.
Na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, o número de transplantes caiu 51,7% em maio, com a realização de apenas 14 cirurgias. José Camargo, diretor do Centro de Transplantes da instituição, aponta que o pulmão é tradicionalmente o órgão mais difícil de ser transplantado, devido ao curto tempo de isquemia (período entre a retirada e o implante). Em maio, a Santa Casa não conseguiu realizar nenhuma cirurgia desse tipo.
— Vimos durante esse trágico maio uma dificuldade de acesso e saída de Porto Alegre. Era difícil para buscar o órgão, onde ele estivesse, ou para o receptor que estivesse fora de Porto Alegre vir para o hospital receber o transplante. É uma dupla dificuldade que justifica essa redução muito importante. E repercute especialmente nos órgãos em que a sobrevivência sem transplante é menor — destaca Camargo, acrescentando que a falta de doadores também é um problema que segue impactando nesses números.
Esforços para a retomada
A logística alternativa adotada pela Central de Transplantes do Estado já refletiu em uma retomada nos transplantes em junho, mesmo que ainda não esteja no patamar pré-enchentes. Dados preliminares mostram que, considerando coração, pulmão, fígado e rim, os hospitais gaúchos realizaram 47 operações do tipo: 14 a mais do que em maio. Se as córneas forem incluídas na soma, o número chega a 156 cirurgias, ultrapassando o total de abril (138).
— É uma recuperação importante: de 33 órgãos transplantados, passamos para 47. E córneas e tecidos oculares continuam sendo surpreendentes, porque tivemos 48 em maio e agora estamos com 109. Foi muito significativo esse aumento — enfatiza a chefe da Divisão dos Transplantes da SES.
Para seguir recuperando os números, o Estado conta com uma campanha permanente, chamada O Amor Vive. Sandra afirma que a SES também está com todo o planejamento pronto para a campanha de setembro, que é o mês marcado pela celebração do Dia Nacional da Doação de Órgãos. A ideia, conforme a chefe do setor, é que sejam feitos diversos cursos de capacitação para os coordenadores intrahospitalares de transplantes de tecidos e de órgãos.
— Tudo isso com o intuito de difundir a nossa campanha e de capacitar médicos e enfermeiros do Rio Grande do Sul, principalmente do interior do Estado. Porque esse número de transplantes depende muito do aceite das famílias, depende de como trabalhamos aqui na Central e das equipes que recebem esses órgãos. Então, dentro dessa questão da campanha, também estamos intensificando a importância de as famílias conversarem em casa sobre a doação de órgãos — aponta Sandra, acrescentando que o amor e a solidariedade observados durante a enchente também são fundamentais para o setor de transplantes.