Themis Reverbel da Silveira (*) e Cristina Helena Targa Ferreira (**)
No desenvolvimento dos transplantes de fígado em seres humanos, as crianças estão presentes desde o seu início. O primeiro transplante hepático foi feito por Thomas Starzl, em 1963, nos EUA, em um menino que tinha três anos e faleceu logo após. Quatro anos mais tarde, o primeiro transplante exitoso também foi de uma criança, uma menina de 19 meses. Desde então, o procedimento, inicialmente experimental, evoluiu a ponto de proporcionar em torno de 90% a 95% de sobrevida para os pacientes.
Dois princípios
Há dois princípios que regem os transplantes. O primeiro: sem doador não há transplante. O segundo: o processo não está concluído na cirurgia. A extrema complexidade requer uma equipe altamente qualificada e multiprofissional: cirurgiões, hepatologistas, pediatras, intensivistas, clínicos especialistas, patologistas, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais. Em hospital onde se realizam transplantes, nenhum departamento fica alheio à atividade: dos laboratórios aos centros de imagem, todos são indispensáveis.
Tripé necessário
Os transplantes de órgãos representam um dos mais notáveis feitos da medicina contemporânea, e a sua realização é considerada um indicador sensível do desenvolvimento humano e científico de uma nação. É uma terapêutica que só existe quando a comunidade aceita e apoia; uma sociedade que não confia não doa. Capacitação técnica/organizacional, confiança e generosidade é o tripé necessário para que um transplante se efetive. O Brasil é o segundo país do mundo em número absoluto de transplantes de órgãos, mas ainda apresenta uma taxa modesta de doação efetiva, com uma alta taxa de recusa familiar (43%) de doadores falecidos.
Doadores vivos
Há diferentes modalidades de transplantes, que são dependentes do tipo de doador: pós-morte encefálica e doador vivo. Na grande maioria dos transplantes em adultos, os órgãos são obtidos de doadores falecidos. No mundo inteiro, a demanda é muito superior à oferta, sobretudo para crianças. Assim, a utilização de parte de órgãos de doadores vivos foi crucial para salvar um maior número de pacientes pediátricos. Deve-se a um brasileiro, o professor Silvano Raia, de São Paulo, em 1988, a descrição da técnica "intervivo" hoje seguida no mundo inteiro. E adotada também para transplantes de adultos. Atualmente a técnica intervivos é a utilizada em cerca de 90 % das cirurgias para pacientes pediátricos.
Quem está apto
As indicações para transplantes seguem as normas estabelecidas pelo Ministério da Saúde. De uma maneira geral, o candidato deve apresentar: doença para a qual não haja outro tipo de tratamento; doença hepática aguda ou crônica progressiva e irreversível; expectativa de vida inferior a um ano nas doenças crônicas; qualidade de vida muito comprometida, inaceitável.
Em pediatria, as principais causas de transplante hepático são: atresia de vias biliares (doença exclusiva da infância decorrente da obstrução da árvore biliar e que representa de 40% a 50% dos casos de transplante); insuficiência hepática aguda; doença hepática metabólica; cirrose; tumores hepáticos; déficit inaceitável de crescimento em razão da doença hepática.
Em Porto Alegre
Dados recentes do Registro Brasileiro de Transplantes e da Associação Brasileira de Transplante de órgãos revelam que em 2023, no Brasil, foram realizados 2.365 transplantes de fígado dentre os quais 224 em crianças e adolescentes.
Em Porto Alegre, há dois centros habilitados e credenciados para transplantar fígado em crianças e adolescentes: o Hospital de Clínicas e o Hospital da Criança Santo Antônio. Majoritariamente financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), os resultados dos programas, desde o seu início em 1995, foram animadores, e a demanda tem crescido muito, com pacientes oriundos das mais diversas regiões do país. Na sua grande maioria, os transplantes eram realizados com doadores falecidos, e a escassez de órgãos determinava que o número dos procedimentos fosse muito aquém da necessidade. Mas a técnica de transplante intervivos, aqui iniciada em 2002 (sendo o doador o pai do bebê), e o rápido progresso da tecnologia, como o uso da cirurgia robótica, têm mudado o panorama em nosso meio, tornando o RS um dos maiores centros transplantadores do país.
(*) Criadora do Programa de Transplante Hepático Pediátrico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, titular da ASRM e professora aposentada da Faculdade de Medicina da UFRGS
(**) Gastroenterologista, hepatologista e endoscopista pediátrica da Santa Casa
Parceria com a Academia
Este artigo faz parte da parceria firmada entre ZH, GZH e a Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM). A estreia foi em março de 2022, com a reportagem "Câncer: do diagnóstico ao tratamento", e está na sua terceira temporada. Uma vez por mês, o caderno Vida vai publicar conteúdos produzidos (ou feitos em colaboração) por médicos integrantes da entidade, que completou 30 anos em 2020, conta com cerca de 90 membros de diversas especialidades (oncologia, psiquiatria, oftalmologia, endocrinologia, otorrinolaringologia etc) e atualmente é presidida pela endocrinologista Miriam da Costa Oliveira, professora e ex-reitora da UFCSPA.