Macas, equipamentos médicos, curativos e remédios destruídos e cobertos de lama. Essa foi a cena observada em centenas de estabelecimentos de saúde do Rio Grande do Sul depois que a água baixou. Desde então, governos municipais, estadual e federal vêm unindo forças com entidades privadas para atuar processo de limpeza, avaliação e reconstrução dos serviços.
Conforme a Secretaria Estadual de Saúde (SES), 715 estabelecimentos foram afetados pelas enchentes em 185 municípios gaúchos. A reportagem de Zero Hora apurou que muitas unidades permanecem fechadas, pois aguardam limpeza e reformas. Algumas, contudo, precisarão ser totalmente reconstruídas. Enquanto isso, voluntários atuam de diferentes formas para não deixar a população desassistida.
Do total de serviços atingidos no Estado, 483 foram de atenção primária e 140 de atenção especializada, sendo 32 hospitais, nove Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) e 19 farmácias. Somente em Porto Alegre, 26 unidades básicas de saúde foram fechadas durante a enchente — 14 delas permanecem fechadas, sendo que seis terão de ser reconstruídas. Tudo que estava dentro desses locais foi perdido, segundo a diretora de Atenção Primária da Secretaria Municipal de Saúde, Vânia Frantz.
Os locais estão passando por avaliações técnicas e limpezas, feitas com a ajuda do Exército. Vânia comenta que há uma estimativa na faixa dos R$ 60 milhões divididos entre as unidades, duas farmácias distritais e dois Centros de Atenção Psicossocial (Caps), mas ainda não se sabe exatamente o tamanho do prejuízo.
— Estamos nessa fase de avaliação para saber quanto precisamos, e aí vamos para os projetos. Por enquanto, temos tentado colocar equipamentos de saúde alternativos, como unidades móveis e tendas, com a ajuda do Sesi, do Exército, da Marinha do Brasil, de ONGs, da iniciativa privada. Estamos buscando serviços alternativos para atender às demandas oriundas das enchentes e da atenção primária — enfatiza a diretora.
Essas estruturas de apoio estão presentes em diferentes cidades. O Estado contava até o início da semana com 11 hospitais de campanha, 14 unidades móveis do Sesi e outras 40 tendas de atendimento clínico e psicossocial, com previsão de aumento desses números, também em parceria da SES com o Sesi. Trata-se de um segundo momento de ações, que sucede as medidas emergenciais, conforme a secretária estadual de Saúde, Arita Bergmann.
A representante da pasta destaca que o Estado repassou recurso emergencial de R$ 45,1 milhões para 246 hospitais, de R$ 24,7 milhões para atenção primária e saúde mental, e de R$ 36,6 milhões para conservação de vacinas e medicamentos, equipamentos, Rede Bem Cuidar e hospitais de pequeno porte. A SES também está encaminhando R$ 15,3 milhões às prefeituras de municípios que tiveram reconhecida a condição de calamidade pública.
— Nós estamos repassando recursos mais para sanear e poder reabrir as unidades. É concreto: já são mais de R$ 100 milhões nas contas das prefeituras e dos hospitais e começamos a entregar equipamentos. também seguimos com nossos programas estratégicos da área da saúde. O cuidado é permanente com quem foi afetado, mas nós temos que cuidar de toda a população gaúcha — ressalta Arita, acrescentando que o Estado aguarda a recomposição do teto estadual e o repasse de recursos por parte do Ministério da Saúde.
Apoio federal
As necessidades de obras e reformas dos municípios foram cadastradas na plataforma InvestSUS, do Ministério da Saúde. Conforme o secretário de Atenção Primária à Saúde do MS, Felipe Proenço, a partir de 15 dias será possível compreender o que será atendido. As reformas e construções, entretanto, têm um prazo um pouco maior.
— Temos tido um diálogo muito próximo com as Secretarias Municipais de Saúde e com a Secretaria Estadual de Saúde, levantando essas necessidades, para ter esse balanço real do que é possível reformar na mesma localidade ou o que vai ser necessário construir em um novo local. Também estamos organizando um corpo de engenheiros e de arquitetos que vão dar todo o suporte necessário para os municípios para que possamos fazer essa avaliação — afirma Proenço.
O Ministério da Saúde viabilizou a montagem de quatro hospitais de campanha no RS — em Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo e Novo Hamburgo — e mobilizou mais de 500 voluntários, sendo que 85 permanecem atuando no território gaúcho. Até terça-feira (25), a Força Nacional do Sul já havia realizado 18,3 mil atendimentos, enquanto as equipes volantes fizeram 4,6 mil. O secretário acrescenta que a pasta também garantiu o estoque de medicamentos, insumos hospitalares e vacinas. Considerando todas as portarias da pasta, os recursos enviados ao Estado já somam R$ 1,8 bilhão.
Situação de outros municípios
Canoas, na Região Metropolitana, teve mais de 20 serviços de saúde atingidos, sendo 18 unidades básicas (UBS), três unidades de pronto-atendimento (UPAs) e um hospital. O secretário municipal de Saúde, Mauro Sparta, comenta que a unidade do bairro Rio Branco, que atendia até 400 pessoas por dia, ficou completamente deteriorada.
Entre as unidades afetadas, três já foram limpas e voltaram a funcionar, enquanto uma está em processo final de recuperação, dependendo apenas de pintura, troca de tomadas e de lâmpadas. Quatro unidades — Harmonia, Praça América, Rio Branco e UPA do Idoso — estão passando por limpeza e passarão por uma avaliação estrutural. Além disso, um posto foi limpo com auxílio do Exército Brasileiro e terá as reformas necessárias e a aquisição de imobiliário pagas pelo Sesi, que firmou uma parceria com a prefeitura de Canoas.
Em relação ao Hospital de Pronto Socorro de Canoas, que foi bastante afetado e precisou ser evacuado no início de maio, Sparta afirma que não houve danos estruturais. O maior prejuízo foi em equipamentos, pois todo o térreo foi inundado, atingindo aparelhos de raio X e tomografia, salas de cirurgia e de recuperação, além da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI).
— O Instituto de Administração Hospitalar e Ciências da Saúde (IAHCS), que administra o hospital, fez um levantamento e só para recompor todos os equipamentos seriam necessários R$ 37 milhões. Mas ainda faltaria valores para redes elétrica, hidráulica e de gases. Estamos fazendo um esforço muito grande junto aos governos e à comunidade para ver se conseguimos colocá-lo em funcionamento o mais rápido possível, mas é muita verba — aponta Sparta.
Para suportar a demanda, Canoas conta com o Hospital Nossa Senhora das Graças e o Hospital Universitário. Além disso, tem 13 postos, três UPAs, três hospitais de campanha e unidades volantes em funcionamento. O secretário destaca que o município recebeu apoio de instituições de saúde de São Paulo, assim como de outros representantes da iniciativa privada, e que já cadastraram seus relatórios no InvestSUS.
Em Estrela, no Vale do Taquari, a unidade de estratégia de saúde da família Moinhos voltou a ficar submersa no mês passado - o local já havia sido atingido pela enchente de setembro e novembro de 2023 e estava em reforma. Agora, a estrutura teve perda total.
A água também invadiu o setor administrativo, destruindo móveis, equipamentos e materiais de expediente. Já a chuva e o vento causaram infiltrações nas dependências do posto central e do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da cidade. A pasta quantificou as perdas em um total estimado de R$ 2,2 milhões, sendo que a reforma para abrigar a equipe do posto Moinhos junto à unidade de saúde Central, com valor de R$ 1,2 milhão, foi solicitada ao Ministério da Saúde por meio do InvestSUS.
São Jerônimo, na Região Carbonífera, também teve três estabelecimentos atingidos pela água, com perda total de equipamentos: a unidade de saúde central, que atende a região da cidade que ficou 50% submersa, o Caps, que atende todas as demandas de saúde mental do município, e a sede da Secretaria Municipal de Saúde. O secretário de Saúde, Éderson Pizzio, afirma que toda a área administrativa e de gestão da pasta foi afetada e comenta que será necessário reconstruir tanto o posto quanto o Caps. A estimativa é que as obras de reconstrução e a aquisição de equipamentos custem mais de R$ 3 milhões.
— Já temos R$ 2 milhões empenhados através do PAC saúde para a construção da UBS central, temos o pedido de R$ 500 mil para aquisição de equipamentos e materiais para os dois serviços, e pedimos R$ 800 mil para a reforma de um prédio que o município está adquirindo para o novo Caps — informa Pizzio, acrescentando que o Hospital Regional de São Jerônimo também sofreu avarias em seu telhado, devido à chuva.
Santa Maria, na Região Central, teve 19 serviços de saúde afetados durante a chuva intensa no RS. A Secretaria de Elaboração de Projetos e Captação de Recursos (Secap) da cidade está fazendo vistorias e orçando valores — até o momento, a estimativa ultrapassa os R$ 970 mil. De acordo com a Secretaria de Município da Saúde, os projetos e orçamentos estão sendo encaminhados para a Defesa Civil Nacional, que encaminhará recursos para as obras.
Impactos nos hospitais privados
Das 245 Santas Casas do RS, mais de cem sofreram impactos diretos, como falta de funcionários e de insumos. Nove tiveram suas estruturas físicas afetadas, mas toda rede sentiu algum tipo de reflexo, já que houve dificuldade na logística e no abastecimento de energia elétrica e de água potável — a instituição de Porto Alegre, por exemplo, precisou contratar mais 12 geradores e 60 caminhões pipa por dia —, ressalta a presidente da Federação das Santas Casas e Hospitais Sem Fins Lucrativos do RS, Vanderli de Barros.
O impacto no atendimento, diante da necessidade de transferir pacientes entre as instituições de saúde, também foi observado. Conforme Vanderli, o Hospital Vida & Saúde, em Santa Rosa, do qual é diretora-geral, recebeu pessoas de cidades como Esteio, Igrejinha, Ijuí, Passo Fundo e Cruz Alta, que normalmente seriam encaminhadas a outros centros. Isso fez com que os hospitais tivessem que colocar toda sua força de trabalho à disposição e que alguns profissionais precisassem até triplicar seus turnos.
Além disso, os hospitais fizeram outros aportes diferenciados, como antecipação de 13º salário e de férias, e precisaram cancelar cirurgias e procedimentos eletivos, reduzindo receitas de serviços que não são feitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e ajudam as instituições a equilibrar os custos. Vanderli lembra que já está sendo observado um aumento nos custos das operações, devido às mudanças logísticas, e uma sobrecarga do SUS.
— Ainda não se sabe o valor específico desse impacto, mas há uma necessidade emergencial de custeio para manter o fluxo de caixa dessas instituições. Então, pedimos ao governo federal R$ 816 milhões de recursos extraordinários para toda a rede. Vários hospitais também estão recebendo doações de diversas frentes — comenta.
Alguns hospitais estão funcionando parcialmente, mas nenhum permanece fechado, garante Vanderli. Na Capital, o hospital mais afetado foi o Mãe de Deus, que teve seu subsolo tomado pela água e precisou suspender todos os atendimentos durante quase um mês. A retomada dos serviços ocorreu de forma gradual, a partir de 1º de junho. Na segunda-feira (24), a instituição voltou a receber pacientes pela emergência geral — apenas a maternidade permanece fechada atualmente.
Para Leonardo Morelli, diretor-executivo do Hospital Mãe de Deus, o problema gerou impactos no financeiro, na saúde da população e nos colaboradores. O subsolo comportava estruturas como o pronto-atendimento em traumatologia, Espaço Mãe 360, ambulatório, laboratório, almoxarifado, auditório, restaurante e farmácia. No período em que permaneceu fechado, o hospital deixou de realizar 1,5 mil atendimentos por dia, quase 5 mil consultas na emergência, 9 mil consultas no ambulatório e 4 mil exames de imagem.
— O Mãe de Deus é o principal provedor de um grande sistema de saúde, onde nós temos mais três unidades privadas, dois hospitais que atendem pacientes SUS e mais quatro Caps. É um número enorme (de serviços que deixaram de ser prestados), estamos falando de alguns milhões de receita ao mês, e tivemos que cumprir nossos compromissos com colaboradores e fornecedores — destaca Morelli.
O diretor-executivo enfatiza que foi feito um trabalho árduo, com a ajuda de colaboradores e de outros hospitais, para que a instituição voltasse a funcionar com segurança. Alguns serviços foram realocados em outras áreas do prédio, já que o subsolo segue fechado, em função das reformas. O processo de limpeza, desinfecção e restauração se baseou no modelo de boas práticas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, e em protocolos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).