A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) lançou uma nota nesta quinta-feira (20) contra o Projeto de Lei (PL) 1904, que prevê de seis a 20 anos de prisão para a mulher que interromper gestação após 22 semanas. A instituição condena a medida, classificando a proposta como retrocesso e ameaça à saúde de mulheres e meninas.
O comunicado destaca que o Estado brasileiro deve garantir acesso a políticas de prevenção, proteção e suporte à violência e ao abuso sexual. A gravidez em vítimas de estupro, sobretudo quando crianças, exige uma abordagem sensível e baseada em direitos para que os efeitos possam ser minimizados e que lhes sejam garantidas a chance de uma vida digna, conforme a instituição.
"No Brasil, o estupro é uma das únicas situações que permitem a interrupção legal da gravidez, em conjunto com o risco de morte de quem gesta e a anencefalia fetal. Nesses casos, não há previsão de limite de idade gestacional para o procedimento, que deve ser ofertado pelo SUS em serviços especializados e credenciados. Mesmo o abortamento sendo permitido nesses casos, a garantia desse direito ainda está muito aquém do desejado", diz a manifestação.
A nota ressalta, ainda, o atraso na identificação de casos de gravidez oriunda de violência sexual para menores de idade, uma vez que boa parte dos estupradores são pessoas conhecidas da vítima, ou seja, pais, padrastos, tios ou avôs, o que dificulta a revelação de uma abuso.
O PL permitiria alterar o Código Penal, que atualmente não pune a interrupção de gravidez em caso de estupro nem define o tempo para realizar o procedimento nesse caso. Caso aprovado, a punição estabelecida poderia ser superior à recebida pelo estuprador.
O documento da Fiocruz traz dados oriundos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Saúde, do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Fiocruz), da Coordenação de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas (Cedipa/Fiocruz) e do Programa Institucional de Articulação Intersetorial Violência e Saúde da Fiocruz.
Leia a nota da Fiocruz na íntegra
"PL 1904 representa retrocesso e ameaça à saúde de mulheres e meninas.
O Estado brasileiro deve garantir acesso a políticas de prevenção, proteção e suporte à violência e ao abuso sexual. A gravidez em vítimas de estupro, sobretudo crianças, exige uma abordagem sensível e baseada em direitos para que os efeitos possam ser minimizados e que lhes sejam garantidas a chance de uma vida digna. Como instituição estratégica do Estado brasileiro para o fortalecimento do SUS, da democracia e das políticas de saúde pública, a Fiocruz posiciona-se de forma contrária à proposta trazida pelo PL 1904 e soma-se à mobilização da sociedade para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
A violência sexual e de gênero configuram um grande problema de saúde pública no país. Estima-se que ocorram 820 mil casos de estupro por ano, sendo 80% de mulheres e apenas 4% detectados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em relação aos agressores, destacam-se quatro grupos principais: parceiros e ex-parceiros, familiares (sem incluir as relações entre parceiros), amigos(as)/conhecidos(as) e desconhecidos(as). A maior parte das vítimas detectadas estão na faixa etária de 11 a 20 anos, seguida do grupo de 0 a 10 anos (Ipea, 2023). Destaca-se nas notificações de violência sexual no SUS que as maiores vítimas são crianças e adolescentes negras, o que nos faz refletir sobre a maior vulnerabilidade desse grupo e sobre as interseccionalidades entre gênero e raça que expõe nossas meninas a esse tipo de violência que, muitas vezes, tem como consequência uma gravidez (Brasil, 2024).
A gravidez resultante de estupro é uma tragédia social de grande impacto na saúde física e mental, assim como na vida de estudo, laboral e de lazer, especialmente quando a vítima é uma criança. Meninas podem não saber que estão sendo violentadas e que esta violência sexual pode provocar uma gestação. Sintomas do gestar não fazem parte do universo simbólico de crianças, que podem ter dificuldades em identificá-los. Dados sobre violência sexual provenientes da saúde e da segurança pública são unânimes em apontar a prevalência da vitimização por familiares e pessoas conhecidas, ou seja, os abusadores são pais, padrastos, tios, avôs, o que dificulta a revelação de uma violência, o pedido de ajuda e o próprio entendimento sobre a gravidez, além de deixar as vítimas mais expostas à violência psicológica. Muitas vezes há o receio de procurarem o serviço de saúde, pois a gestação em virtude do estupro impacta as mulheres e meninas de diferentes maneiras, incluindo a vergonha e o medo.
No Brasil, o estupro é uma das únicas situações que permitem a interrupção legal da gravidez, em conjunto com o risco de morte de quem gesta e a anencefalia fetal. Nesses casos, não há previsão de limite de idade gestacional para o procedimento, que deve ser ofertado pelo SUS em serviços especializados e credenciados. Mesmo o abortamento sendo permitido nesses casos, a garantia desse direito ainda está muito aquém do desejado. São poucos os serviços de saúde especializados que estão preparados para o procedimento e os vazios assistenciais são gigantescos.
Estudo com dados de 2019 identificou que os estabelecimentos de saúde com registro de aborto por razões médicas e legais e do tipo Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei, estavam presentes em apenas 3,6% (200) dos municípios brasileiros. A maioria dos estabelecimentos estava localizado em municípios da Região Sudeste (40,5%) (Jacobs, 2021). Mesmo em serviços credenciados para realizar o procedimento, tem-se a dificuldade de os profissionais médicos aceitarem realizar por objeção de consciência, ainda que o estabelecimento de saúde, uma vez cadastrado, deva garantir a existência de profissionais que o façam.
Dessa forma, a proposta trazida pelo PL 1904, de limitar a idade gestacional para o abortamento legal em 22 semanas, limita o acesso a esse direito, na medida em que a identificação da gravidez em vários casos é demorada. O fato dessa vítima ser impedida legalmente de realizar um aborto traz consequências psicológicas que podem ser duradouras e, se tratando de crianças, trazer consequências físicas que incluem a possibilidade de óbito. O PL representa, portanto, mais uma falha na proteção integral, assim como estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja responsabilidade é, inicialmente, da família, mas também do Estado e da sociedade.
Nesse sentido, a Fiocruz vem reafirmar seu compromisso em defesa do acesso a políticas de saúde pública para todos e dos direitos reprodutivos da mulher assumidos pelo governo brasileiro (Brasil, 2005) e definidos em Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1994.
Presidência"