O projeto de lei que equipara o aborto após 22 semanas ao homicídio simples reavivou o debate sobre o tema no país. Na quarta-feira (12), a Câmara dos Deputados aprovou a tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei (PL) 1904/24. A proposta altera o Código Penal, que atualmente não pune a interrupção de gravidez em caso de estupro nem define o tempo para realizar o procedimento nesse caso.
O procedimento também é permitido quando há risco de morte da mulher e anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto). Uma das polêmicas é que o PL 1904/24 estabelece de seis a 20 anos de prisão para quem descumprir a norma, uma punição que poderia ser superior à recebida pelo estuprador.
Os argumentos divergem e vão de preceitos religiosos à saúde pública. Há quem defina o texto como um atentado aos direitos das mulheres e prejudicial para o avanço do tema no país. Outros afirmam ser preciso defender a vida e manter a criminalização do aborto.
O projeto ainda será votado no plenário da Câmara, mas o presidente da Casa, Arthur Lira, não informou quando isso ocorrerá.
O que afirma quem é contrário ao PL
Fabíola Loguercio, integrante da União Brasileira de Mulheres (UBM), pontua que a aprovação do texto significaria um retrocesso na legislação e um prejuízo à discussão do tema.
— Um dos direitos fundamentais é garantir que mulheres vítimas de violência sexual possam não gestar um filho do estuprador. Esse PL afeta principalmente as crianças vítimas de estupro, que sofreriam violência dupla: ter que gestar e ser mãe — pontua, ao citar que o projeto também prejudica o acesso ao aborto seguro.
Criminalizar a interrupção da gravidez após 22 semanas em casos de estupro é uma violação do direito à saúde, segundo Camila Giugliani, médica de família e comunidade e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS):
— Muitas meninas não reconhecem a gravidez ou têm dificuldade de chegar em um serviço de saúde. A busca pelo aborto ocorre por conta de uma necessidade, negar o acesso vai na contramão do que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para uma saúde qualificada, com bem-estar social e equidade de gênero — comenta a estudiosa, também integrante do Fórum Aborto Legal RS.
A médica alega que o PL faz parte do histórico nacional de tratar o aborto como um crime, o que impede a resolução de problemas, na visão dela:
— Como profissional da saúde, entendo que a descriminalização levaria a uma abertura maior para dialogar sobre a prevenção da gravidez indesejada, o que levaria inclusive a reduzir o número de abortos na sociedade — acrescenta Camila.
A mudança na lei do aborto também encontra resistência em entidades e organizações religiosas; como a Católicas pelo Direito de Decidir, uma das que foi às ruas protestar contra o PL após a aprovação.
— Sempre defendemos a vida das mulheres, das meninas e de todas as pessoas. Todos têm o direito de ser feliz e o livre-arbítrio para tomar decisões pessoais. Ele (o projeto de lei) é cruel porque penaliza com prisão mulheres e meninas que já sofreram um abuso ao serem estupradas — pontua Maria José Rosado, presidente da ONG.
O que diz o lado favorável ao PL
Andrea Hoffmann Formiga, presidente-executiva do Instituto Isabel, uma ONG que atua no debate de leis, políticas públicas e decisões judiciais no Brasil, diz apoiar textos que defendam a vida.
— Defendemos a vida desde a fecundação até a morte natural. Estamos apoiados pela sociedade, já que a maioria da população defende o mesmo. As políticas para a mulher devem defender o acolhimento para a preservação das duas vidas, da mãe e da criança. O aborto não é uma política pública e não resolve o problema da violência nem o de haver estupradores.
Raphael Parente, médico ginecologista e ex-secretário de Atenção Primária à Saúde (APS) do governo Jair Bolsonaro, assegura que são falsos os argumentos de quem desaprova o projeto de lei, em especial o entendimento de que ele prejudicará o acesso à saúde para as mulheres.
— Ninguém descobre gravidez com 22 semanas, é tão raro que vai até para televisão quando acontece. Quanto ao acesso, é fácil: é só ir nos locais que fazem aborto com excludente de punibilidade. Interromper a gravidez não é saúde — afirma.
Parente é o relator da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe assistolia fetal – procedimento usado na interrupção da gravidez em casos de aborto previstos em lei. Ele defende que o documento do órgão seja a lei sobre o assunto; sobre o PL, posiciona-se favorável, mas com ressalvas:
— Aprovo o mérito de colocar limite para matar o bebê. Penso ser melhor reavaliar a pena de 20 anos, que, a meu ver, é excessiva. Eu também deixaria mais claro a parte do médico em situações de risco de morte.
A mudança na lei engloba também uma discussão religiosa; o autor do projeto é o pastor Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), um dos integrantes da chamada bancada evangélica na Casa. O posicionamento dele – de endurecer a legislação do aborto – encontra apoio na maior parte do grupo religioso.
— A Bíblia não fala de aborto, e sim sobre a vida. Nas igrejas, pregamos o que a palavra nos ensina. Ela afirma que Deus nos dá a vida e apenas Ele tem o direito de tirá-la. Vamos matar uma criança porque ela tem origem em um estupro? Precisamos pensar essas polêmicas à luz das Escrituras — argumenta o pastor Capelão Gilvani Silveira, diretor-técnico da Federação de Apoio às Associações, Igrejas e Ministros Evangélicos do Brasil (Faaimeb).