Em meio aos milhares de hectolitros de água lamacenta que cobrem o Rio Grande do Sul, uma gota de sangue traz esperança. Uma força-tarefa possibilitou que o exame do teste do pezinho de um bebê nascido em Pelotas na última terça-feira (30) chegasse em tempo hábil a Porto Alegre, único local no Estado em que a análise é realizada. A celeridade no processo, que iniciou com a coleta do material na sexta-feira (3), em meio ao caos permitirá que Samuel Peter Maia leve uma vida normal.
O recém-nascido corre risco de portar a fenilcetonuria, distúrbio que se detectado e tratado nos primeiros dias de vida não acarretará em dificuldades futuras, mas que, sem o diagnóstico, causa danos severos à saúde. Entre as doenças consideradas raras, ela está entre as com maior ocorrência. No Rio Grande do Sul, os índices são de 1 caso a cada 10 mil nascimentos. Como seu irmão nasceu com enfermidade, Samuel tem 25% de chance de ter a fenilcetonuria.
Trata-se de uma doença genética autossômica recessiva causada pela ausência, ou diminuição, da atividade da enzima hepática fenilalanina. De uma maneira mais simples, ela gera um defeito metabólico no processamento das proteínas. Se não detectada nos primeiros dias de vida, ocasiona epilepsia e deficiência intelectual.
O diagnóstico no tempo certo permite a criação de uma nova dieta alimentar, com menor quantidade de proteínas e a utilização de um leite especial. Entre as limitações está a quantidade de leite materno dada ao bebê, que precisa ser reduzida. O tratamento dura por toda a vida.
A corrida contra o relógio motivou uma corrente de solidariedade para permitir que o bebê não sofra com consequências graves. Ao seu auxílio, o serviço de genética médica do Hospital de Clínicas, onde o bebê e seu irmão são pacientes, e o serviço de referência em triagem neonatal do Hospital Presidente Vargas (HPV). Ambos referências nacionais em suas áreas de atuação, eles entraram em contato com a Secretaria de Saúde do governo estadual na busca por uma solução.
— Tem de fechar diagnostico até o 15º dia de vida para criar tratamentos precoces — explica Vivian Spode Coutinho, coordenadora do departamento do HPV.
A Secretaria foi informada que um avião da FAB estava vindo de Pelotas para Porto Alegre, Além de materiais para ajudar às vítimas da enchente, aeronave pousou na Base Aérea de Canoas contendo cartela com uma gota de sangue de Samuel. De lá, foram mais três horas de carro até o teste chegar no HPV.
— Todos querem ajudar de alguma uma maneira. Foi uma rede solidariedade pela quantidade de intuições envolvidas. De alguma maneira, no meio da tragédia, temos como contar com os outros. É importante as intuições de saúde seguirem funcionando — vibra Ida Schwartz, chefe do Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas.
Na rede pública, o exame do teste do pezinho detecta sete doenças que necessitarão de acompanhamento e tratamento do primeiro ao último dia de vida.
— Temos toda uma rede de cuidado. Vai muito além do teste — explica Vivian, ao citar que o acompanhamento dos pacientes é perene.
Porto Alegre recebe a totalidade de todos os testes do pezinhos realizados nos 497 municípios gaúchos. Cerca de 99% deles chegam por Sedex. Como o serviço dos Correios foi paralisado devido à enchente, poucos exames estão sendo realizados desde a semana passada. Há um trabalho de formiguinha para que as amostras cheguem na maior quantidade possível, para que o pingo de sangue do pezinho de Samuel seja apenas uma das muitas gotas de esperança que estão por vir em meio à inundação.