Mergulhar no mundo do videogame pode ser uma atividade prazerosa para crianças e adultos, mas quando essa realidade virtual torna-se mais interessante e até mais "frequentada" do que a vida real, pode ser a hora de ativar um alerta. Dificuldades para dormir, inquietação, menor capacidade de concentração e ansiedade, aliados ao uso cada vez maior dos games, podem ser alguns dos indícios de que há um distúrbio do jogo.
Para o profissional da área de marketing Carlos Eduardo Borba, o sinal de alerta foi o mau desempenho escolar. Pedro, seu filho de 13 anos, joga videogames em um console e no computador. Seu jogo preferido é o Fortnite, um tipo de jogo online, com interação com outras pessoas.
— O que eu gosto mais é o competitivo, o jeito do jogo de ser. Porque precisa ter habilidade em várias coisas diferentes: visão de jogo, saber construir, a mira e muito mais, só exemplificando assim — descreve o jovem.
Quando as notas de Pedro começaram a cair, há cerca de dois anos, Carlos ficou preocupado com o tempo que ele passava nos jogos. O pai pensou nisso ao escolher um lugar para se mudar de Cachoeirinha para Porto Alegre. Preferiu ficar próximo à Redenção e outras áreas de lazer, para que eles pudessem praticar a atividade favorita de Pedro: andar de bicicleta.
A possibilidade de desempenhar mais atividades ao ar livre somada às exigências para que Pedro cumpra suas obrigações, como alimentar os gatos, arrumar o quarto e fazer as atividades da escola, subiram as notas do filho novamente. Agora, a situação é de equilíbrio, avalia Carlos.
Para o psiquiatra e coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (GEAT), Daniel Spritzer, embora os games possam gerar dependência, o uso da maioria das pessoas não apresenta prejuízos significativos a outras áreas da vida. Ainda assim, sinais devem ser monitorados.
- Jogar cada vez mais para se sentir satisfeito
- Relacionar-se menos com amigos e familiares (isolamento)
- Frustração excessiva com revezes no jogo
- Organização de todo o dia em volta do videogame
- Piora na memória
O que propor
Inicialmente, é necessário monitorar o uso de telas. A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é de que a criança não seja exposta a telas até os dois anos de idade. É importante respeitar os limites:
- Entre os dois e cinco anos de idade, o tempo máximo de exposição deve ser de uma hora por dia
- Para crianças de seis a dez anos, o limite é de duas horas
- Entre os 11 e 18 anos, o recomendado é até três horas
Respeitar o tempo recomendado é importante não só para prevenir a dependência, como também assegurar o desenvolvimento pleno das funções físicas e mentais da criança, analisa o neurologista pediátrico Eduardo Jorge Custódio, do Grupo de Trabalho sobre Saúde Digital da Sociedade de Pediatria. Em relação aos jogos digitais, é importante sempre prestar atenção à classificação etária do game, além de estabelecer limites claros de horário.
— As famílias devem, em primeiro lugar, privilegiar todas as tarefas desse jovem. Ele primeiro tem que ir à escola, depois ele tem que chegar da escola, fazer as lições, tomar seu banho, fazer as refeições com a família, ajudar a mãe a arrumar o quarto, arrumar as coisas dele, dar uma descansada, tomar seu banho. Aí sim, no momento de lazer, os pais devem permitir ou ver uma televisão, ou jogar, mas também observar que tipo de jogo é esse — detalha a professora da pós-graduação do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fundadora do Instituto Delete, Anna Lucia Spear King.
Segundo ela, muitas vezes os próprios pais oferecem condições propícias para o vício, ao dar acesso ao equipamento no quarto da criança e permitir que ela fique por muitas horas lá sozinha, muitas vezes até levando lanches. Além disso, os pais acabam não dando exemplo, ao ficar sempre no celular, que, mesmo não sendo igual aos games, é usado para escapismo.
Para o psicólogo Léo Strack, o ideal é que a atividade também seja feita com a família, como ferramenta para criar vínculos. Isso vai fazer com que a criança busque as pessoas e goste mais de jogar junto. Ele alerta que o jogo não deve ser usado como uma ferramenta para distrair a criança enquanto os pais fazem outras coisas.
— Isso é perigoso, porque a gente não sabe ao que a criança está sendo exposta — diz.
As famílias devem, em primeiro lugar, privilegiar todas as tarefas desse jovem. Ele primeiro tem que ir à escola, depois ele tem que chegar da escola, fazer as lições, tomar seu banho, fazer as refeições com a família, ajudar a mãe a arrumar o quarto, arrumar as coisas dele, dar uma descansada, tomar seu banho. Aí sim, no momento de lazer, os pais devem permitir ou ver uma televisão, ou jogar.
ANNA LUCIA SPEAR KING
professora da pós-graduação do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fundadora do Instituto Delete
Custódio ressalta que a proibição total dos games não é uma boa alternativa, assim como a interrupção autoritária. Ele incentiva os pais a jogarem junto com os filhos e conhecerem a mecânica do game. No caso de pessoas próximas já adultas que podem ter o vício, é importante oferecer apoio e se mostrar atento e preocupado. Buscar o diálogo e auxiliar o indivíduo a procurar ajuda profissional são alternativas. Com essa ajuda, o indivíduo pode desenvolver suas habilidades de autorregulação, com gerenciamento do tempo e regulação emocional.
O que é o distúrbio do jogo
Como qualquer outra dependência, o chamado gaming disorder - ou distúrbio do jogo, na denominação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) - prejudica a socialização, saúde mental e desempenho do sujeito, seja na escola, faculdade ou trabalho. A condição é caracterizada pela perda de controle sobre a frequência e hora de começar e parar de jogar, priorização do jogo sobre outras atividades fundamentais do cotidiano e incapacidade de parar mesmo com as consequências negativas.
Em 2013, o “internet gaming disorder” (IGD) já havia sido incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5ª edição (DSM-5), na categoria de condições a serem estudadas mais profundamente. Outro marco foi a inclusão do distúrbio do jogo na 11ª revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-11), pela OMS, em 2022.
Estudos sobre a prevalência do distúrbio do jogo apresentam resultados variados. Enquanto alguns apontam que a condição pode afetar cerca de 0,7% da população mundial, outros apontam taxas próximas a 2%, aponta o psicólogo especialista em dependência química e doutorando Psiquiatria e Ciências do Comportamento Nino Marchi. No Brasil, uma pesquisa de 2017 do Jornal Brasileiro de Psiquiatria estimou que ele afeta 2,9% da população nacional. Em 2022, uma pesquisa da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames) concluiu que 74,5% dos brasileiros jogam com frequência.
De acordo com Documento Científico da SBP, o distúrbio do jogo está presente quando o indivíduo tem um padrão de jogo persistente ou recorrente, por pelo menos 12 meses, com todas estas três características:
- "Perda de controle sobre o jogar (relacionado ao início, frequência, intensidade, duração, término e contexto)
- Aumento de prioridade dada ao jogar, que se sobrepõe a outros interesses e atividades diárias (sono, alimentação, estudo e relacionamentos)
- Continuidade ou mesmo aumento da atividade de jogar apesar da ocorrência de consequências negativas
A dependência está atrelada ao fato de que a pessoa pode “escapar” da vida real, utilizando uma outra identidade representada por seu personagem no jogo, com uma personalidade que ela considera mais atrativa do que a da vida real. Outro mecanismo que pode levar ao vício é o ranqueamento, com gratificações ao subir de nível.
— O jogo atua no sistema de recompensa do cérebro, porque a pessoa vai ganhando, vai ficando feliz, vai se relacionando com pessoas, vai ganhando algum dinheiro. Então, isso aí vai liberando dopaminas, endorfinas, serotonina no cérebro, que são neurotransmissores que fazem com que a pessoa se sinta bem e tenha prazer — comenta a professora da pós-graduação do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fundadora do Instituto Delete, Anna Lucia Spear King.
Consequências
Uma das consequências do distúrbio do jogo é a falta de produtividade no trabalho, escola e faculdade. Também pode haver aumento de agressividade, descontrole de emoções, falta de cuidado com a saúde física, obesidade, problemas de desenvolvimento cognitivo e distúrbios do sono. O uso prolongado da tela também pode causar a síndrome do olho seco, com visão embaçada e ardor nos olhos.
Entre os efeitos sociais de uma maior incidência do vício está uma epidemia de solidão, diz o psicólogo Léo Strack.
— Mesmo que eu me sinta próximo dos outros no mundo virtual, eu não tenho contato físico real. Existem hormônios liberados através do toque, então a ausência é um problema — comenta Strack — Eu também não vejo a pessoa, a pessoa no jogo não possui um corpo, essa falta pode não parecer significativa, mas ao longo do tempo a gente começa a perceber o prejuízo das pequenas coisas.
O tratamento pode ser composto por Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) e medicamentos para tratar problemas subjacentes, como ansiedade ou depressão, aponta Marchi. Segundo Strack, em casos associados à dependência, a TCC tem mais evidências de efetividade, uma vez que tende a ser mais objetiva em relação à modificação no comportamento, tem resultados mais palpáveis e é mais indicada.
A abstinência total muitas vezes não é saudável, porque pode atrapalhar a socialização do indivíduo, aponta Strack. Para ele, a melhor opção é trabalhar com o controle do uso, mas o psicólogo admite que é difícil chegar a um equilíbrio. Outra opção apontada pela psicóloga e doutoranda pesquisadora do assunto Indianara Sehaparini é o grupo Jogadores Anônimos, voltado ao apoio a pessoas com essa dependência, com reuniões online. O grupo também existe no Rio Grande do Sul e pode ser contatado neste site. Também é possível recorrer ao Instituto Delete da UFRJ, com atendimento gratuito e online também para pessoas de fora do Rio de Janeiro.
É possível conferir uma versão reduzida da Escala de Transtorno de Jogo pela Internet, publicada pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). O questionário avalia a gravidade do transtorno e efeitos prejudiciais nos últimos 12 meses. A SBP ressalta que instrumentos de triagem, como este, não são diagnósticos. Eles apenas sinalizam os sujeitos que merecem uma entrevista clínica mais aprofundada para a adequada identificação do problema.