Reduzir o impacto das redes sociais na saúde dos usuários é o objetivo do detox – ou desintoxicação – digital, uma prática adotada por quem busca menos ou nenhuma exposição aos ambientes virtuais. A mudança no relacionamento com a internet é defendida por especialistas, que orientam uso moderado por adultos e atenção com crianças e adolescentes, o grupo mais "dependente" de telas e redes sociais.
Não há, porém, uma quantidade saudável de horas por dia nas redes sociais: a dica de estudiosos é limitar a utilização ao necessário e adotar rotinas que estimulem manter distância de celulares. O uso compulsivo pode causar problemas de saúde, na educação e na sociabilidade dos usuários.
As principais redes sociais têm sofrido pressão por mudanças. TikTok e Instagram, por exemplo, criaram configurações para alertar ou limitar o tempo diário de tela do usuário. Essas duas redes sociais, além de Snapchat e YouTube, foram processadas nos Estados Unidos por supostamente provocarem dependência e danos às crianças. A prefeitura de Nova York também se posicionou de maneira semelhante: iniciou um processo sob justificativa de que essas plataformas alimentam uma "crise de saúde mental em jovens".
— O uso de redes sociais age diretamente em uma região do cérebro responsável pelo mecanismo de recompensa, liberando dopamina. Ou seja: são altamente viciantes, geram um prazer exacerbado. É parecido ao que sentimos quando comemos uma comida que gostamos — diz Bruno Raffa Ramos, psiquiatra do Hospital São Lucas (HSL) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
O vício em redes sociais não é reconhecido como distúrbio pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, documento editado nos Estados Unidos e considerado a principal referência para a psiquiatria no mundo. Por isso, especialistas têm cuidado no uso do termo: alguns preferem citar a prática como uso excessivo ou compulsivo. Definições à parte, a utilização exacerbada é uma preocupação de estudiosos por conta da influência em todas as áreas da vida do usuário.
— Os níveis de ansiedade são gritantes. Adultos jovens, nascidos em 1998, 1999, 2000, têm grandes dificuldades de enfrentar as possibilidades de trabalho, as negativas, frustrações, isso os deixa mais retraídos. A comunicação face a face é mais difícil para eles do que é para outras gerações — comenta Andrea Jotta, psicóloga e pesquisadora em cyberpsicologia no Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Sinais do vício
Estudos sobre o uso de internet indicam que os brasileiros têm exagerado na presença no mundo digital. Os moradores do país gastavam, em média, cinco horas e 20 minutos diárias no celular em 2022, segundo dados da consultoria data.ai, que publica anualmente o relatório global State of Mobile sobre o uso de dispositivos móveis. O Brasil ocupou o segundo lugar, empatado com Arábia Saudita e Singapura, no levantamento que mapeou 30 nações.
O uso prejudicial ocorre quando você rola o feed sem nenhum foco, pensa o tempo inteiro em redes sociais, tem a necessidade de ver o que está acontecendo.
ANDREA JOTTA
Psicóloga e pesquisadora em cyberpsicologia no Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação da PUC-SP
Em outra pesquisa, de 2023, com 45 países, o Brasil só perdeu para as Filipinas em tempo de uso de tela: nove horas, segundo a plataforma Electronics Hub, um site de informações sobre tecnologia.
A quantidade de horas no digital por dia pode ajudar a identificar quem faz a utilização exacerbada de redes sociais, mas o cálculo sozinho não basta, acrescenta Andrea Jotta:
— O uso prejudicial ocorre quando você rola o feed sem nenhum foco, pensa o tempo inteiro em redes sociais, tem a necessidade de ver o que está acontecendo. É nesse momento em que o alerta tem que soar na sua cabeça.
Vencer a dependência é questão de mudanças de hábitos. Desligar o celular quando não precisa usá-lo ou deixá-lo em outro cômodo da casa são conselhos para evitar que o dispositivo esteja à mão, acessível o tempo todo. Desinstalar os aplicativos mais usados também pode desestimular o acesso. Nos casos mais complexos, sair de todas as redes sociais é uma opção a ser considerada.
— A parte boa é que não é água, comida, o ar que você respira: é apenas um comportamento em tecnologia que foi adquirido. Do mesmo jeito que você adquiriu, é possível retirá-lo da sua vida. Ninguém morreu por fazer detox (das redes sociais) — diz a pesquisadora Andrea Jotta.
Já Anna Lucia Spear King, doutora em Saúde Mental e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), posiciona-se contrária ao detox total.
— As tecnologias fazem parte do mundo moderno, necessitamos delas para tudo. Nós defendemos o uso consciente, que cada um possa traçar as estratégias para usar no seu dia a dia, para acolher os benefícios e evitar os prejuízos — argumenta.
Três tipos de uso de tela
Anna Lucia é fundadora do Instituto Delete, criado para estudar o impacto das tecnologias na saúde. Os pesquisadores defendem que a dependência digital está relacionada ao nível de perda de controle na "vida real".
São três tipos de uso das telas: consciente, quando o virtual não atrapalha o mundo real; abusivo, quando o virtual atrapalha o mundo real, mas existe um nível de controle por parte do usuário; e o dependente patológico, quando o virtual atrapalha o mundo real e existe uma perda de controle a partir dos sintomas da nomofobia.
Nem todo mundo que usa tecnologia todos os dias e por muitas horas seguidas é um viciado. A pessoa pode ser apenas mal educada para o bom uso.
ANNA LUCIA
Fundadora do Instituto Delete
Para Anna Lucia, o uso consciente inclui restringir o acesso às telas e redes sociais ao necessário para as tarefas pessoais e profissionais. Não há, portanto, uma quantidade de tempo diária saudável indicada.
Uma pessoa que trabalha com o Instagram, por exemplo, terá naturalmente mais horas em frente ao celular ou computador do que outra que faz atividades não relacionadas à internet.
— Uso consciente é você usar tecnologias no horário comercial, evitar usá-las na hora das refeições, desligar uma ou duas horas antes de deitar, não usar as tecnologias na presença de outras pessoas por respeito a quem está com você, dar atenção total a essa pessoa — cita.
A pesquisadora diz que certo nível de dependência das redes sociais é normal por conta de relações com outras pessoas e também devido ao mercado de trabalho; é comum, portanto, usarmos essas conexões diariamente, pois são ferramentas do nosso convívio.
— Nem todo mundo que usa tecnologia todos os dias e por muitas horas seguidas é um viciado. A pessoa pode ser apenas mal educada para o bom uso, pode apenas estar usando sem limites — esclarece.
A situação muda no caso dos que têm dependência patológica de tecnologia. A nomofobia – fobia de ficar sem o celular – é um dos exemplos mais conhecidos. Há, ainda, situações nas quais a presença na internet é consequência de condições graves, que demandam cuidado especializado.
— É preciso analisar se a pessoa tem um transtorno mental, ansiedade, depressão ou compulsão, por exemplo, que esteja potencializando o uso e a torne uma dependência patológica. Temos casos de pacientes com fobia social que não conseguem sair de casa e se relacionam apenas pelas redes sociais porque têm vergonha da própria imagem e querem se esconder atrás de uma tela — exemplifica a fundadora do Instituto Delete.
Crianças e adolescentes
Especialistas são unânimes ao indicar os mais afetados pela dependência digital: crianças e adolescentes, um grupo que nasceu rodeado por telas, internet e redes sociais.
Segundo uma pesquisa de 2023 da TIC Kids Online, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, 92% da população com idade entre nove e 17 anos era usuária de internet no país no ano anterior; o celular foi identificado como o dispositivo mais usado por crianças e adolescentes para o acesso. A pesquisa ainda indicou que 86% dos usuários nessa faixa etária e 96% para os usuários de 15 a 17 anos possuíam ao menos um perfil em redes sociais.
O uso abusivo é uma constante. Quase metade das adolescentes que utilizam o TikTok disse se sentir viciada na plataforma ou que ficava na rede social por mais tempo do que pretendia, segundo uma pesquisa publicada em março de 2023 pela Common Sense Media, uma organização sem fins lucrativos dos Estados Unidos que ajuda crianças, pais e escolas a fazer melhor uso dos dispositivos de mídia. A ONG também descobriu que adolescentes de 11 a 17 anos verificavam seus telefones em média mais de cem vezes por dia.
Pessoas desse grupo (crianças) que vivem muito no mundo virtual têm também muita dificuldade de enfrentar as frustrações da vida adulta.
BRUNO RAFFA RAMOS
Psiquiatra do Hospital São Lucas
A utilização recorrente dos dispositivos é prejudicial em todas as fases da vida, mas ganha peso no caso de indivíduos em formação, diz Bruno Raffa Ramos, psiquiatra do Hospital São Lucas e especialista em infância e adolescência:
— Quanto mais cedo a pessoa é exposta ao mecanismo de recompensa, mais propensa ela fica de desenvolver um comportamento viciante. O indicado é postergar o quanto for possível o uso de redes sociais e celular na infância.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que crianças menores de dois anos não sejam expostas a telas, enquanto as que têm entre dois e cinco anos devem ter o tempo limitado a uma hora diária. Indivíduos entre seis e 10 anos devem utilizar telas por até uma a duas horas por dia. Quem tem entre 11 e 18 anos não deve ultrapassar três horas diárias de tela (videogames entram nessa conta).
— O vício causa falta de vontade de fazer atividades práticas do dia a dia, prejudica a atenção, as crianças não conseguem completar tarefas, ficam mais inconsistentes. Pessoas desse grupo que vivem muito no mundo virtual têm também muita dificuldade de enfrentar as frustrações da vida adulta — acrescenta Ramos.
Por isso, o psiquiatra orienta que pais utilizem o controle parental, um recurso de celulares que limita o uso do dispositivo durante o tempo escolhido; quando atingido o máximo, o aparelho bloqueia e a criança não consegue acessá-lo. Somado a isso, conversas sobre os problemas do uso prolongado e evitar medidas drásticas como a proibição repentina são também auxiliares.
O exemplo, porém, deve vir dos pais, insiste o especialista: os filhos são influenciados por pai e mãe, que, por consequência, também precisam adquirir hábitos que estimulem os menores a evitar telas.
— Pais com dificuldade de largar o celular não dão atenção aos filhos, e os filhos acabam usando mais celular porque não recebem atenção dos pais. Isso gera um ciclo que atrapalha muito as relações pessoais e familiares e cria um relacionamento distante dentro de casa — comenta o psiquiatra do Hospital São Lucas.