Em 2021, pretos e pardos representaram a maioria entre os casos de aids, HIV em gestantes, sífilis adquirida e hepatite B detectados no Brasil. O mesmo ocorreu em relação ao total de diagnósticos de tuberculose realizados no ano seguinte. Esses dados fazem parte do Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra, divulgado recentemente pelos ministérios da Saúde e da Igualdade Racial. Na avaliação de especialistas, os indicadores desfavoráveis são reflexos do racismo estrutural e institucional, que dificulta o acesso dessa parte da sociedade aos serviços de saúde, fazendo com que estejam mais suscetíveis ao adoecimento e também à morte.
Trata-se do segundo volume do boletim epidemiológico especial, que traz uma análise com critério raça-cor que não era realizada desde 2015. Nesse material, são abordadas as doenças infecciosas que afetam, em sua maioria, pessoas negras. O documento ressalta, contudo, que isso não significa que elas tenham mais predisposição genética para essas enfermidades, mas sim que “a estrutura racial estabelecida pela sociedade brasileira impõe às pessoas negras péssimas condições de vida”, como a limitação de acesso aos serviços de saúde.
O boletim também apresenta os cenários e desafios para a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que foi instituída em 2009. A adesão dos municípios é considerada baixa: em 2021, o número de localidades que declararam ter incluído em seus planos municipais de saúde ações previstas na política era de 1.781, o que representa 32% do total.
Em relação às doenças, os primeiros dados apresentados abordam infecções sexualmente transmissíveis. De 2011 a 2021, o número de casos de aids entre os negros, que inclui pessoas autodeclaradas pretas e pardas, aumentou de 50,3% para 62,3%. O índice de mortes pela doença nessa população também teve elevação, atingindo 60,5%. Em contrapartida, entre os brancos, o percentual de diagnósticos diminuiu de 48,8% para 36,3% no mesmo período.
Os casos de HIV em gestantes, hepatite B e sífilis adquirida, em gestantes e congênita também aumentaram entre negros e diminuíram entre brancos em 10 anos. A exceção fica por conta da hepatite C, cujos percentuais cresceram em ambas as populações.
Dados sobre novos casos de tuberculose também são apresentados, mas com recorte de anos específicos: 2010, 2015, 2020 e 2022. Nesse período, a quantidade de diagnósticos entre pretos e pardos saltou de 53,9% para 63,3%, enquanto a porcentagem de casos entre brancos reduziu de 35% para 27%.
— Todas as doenças têm interferência do que chamamos de determinantes sociais e também determinantes ambientais. [...] Tudo o que o boletim traz de dado é explicado pela persistência do racismo. Mais do que a causa, que creio que precisa sempre ser aprofundada, precisamos trabalhar nas políticas que nos levem a ter de fato a superação do racismo na nossa sociedade, a equidade como um princípio orientador — defendeu a ministra da Saúde, Nísia Trindade, em outubro, durante o lançamento do Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra.
Prevalência genética ou consequência do racismo?
Gisele Martins Gomes, coordenadora de Políticas Públicas de Saúde e assessora técnica da área técnica de Saúde da População Negra da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre, explica que as doenças que têm prevalência genética entre negros são as circulatórias, como hipertensão e a diabetes, e a doença falciforme:
— Os primeiros relatos de doença falciforme são na África, por isso, há uma prevalência na população negra. Mas não é uma exclusividade dessa população, há um aporte grande de pessoas não negras diagnosticadas com a doença. Mas quando chegamos nessas doenças que não têm relação genética, precisamos olhar para a questão do racismo estrutural.
A especialista destaca que o Sistema Único de Saúde (SUS) preconiza a equidade e igualdade no atendimento das populações. Mas, diante do real cenário observado no Brasil, defende que é preciso olhar de uma forma mais específica para as pessoas de cada grupo, principalmente porque os negros vêm de um histórico de desigualdade, no qual ainda são mantidos, com níveis de escolaridade menores, quando comparado aos brancos.
— Então elas estão em empregos de base ou na informalidade, por isso, vamos encontrar indicadores de saúde muito ruins entre a população negra. O racismo não pode estar vinculado à saúde, mas vemos que a iniquidade social dificulta o acesso aos serviços. Entendemos o racismo como um determinante social de saúde, que causa uma desigualdade profunda, ponde em risco a vida de pessoas negras de todas as idades — afirma Gisele.
Para além de garantir acesso a recursos biofarmacológicos, é necessário garantir direitos.
TIAGO PAIVA
COORDENADOR DE GRANDE ÁREA NA UNIRITTER
O enfermeiro Tiago Paiva, que atua como coordenador de Grande Área na UniRitter, comenta que existe uma gama de doenças que são sustentadas por indicadores sociais, ou seja, que não se consegue explicar apenas pelo olhar biológico. Nesses casos, se sabe que a condição socioeconômica e o acesso à informação também geram uma vulnerabilidade ao processo de adoecimento — a aids é uma das enfermidades que se enquadram nessa classificação, aponta.
De acordo com Paiva, os indicadores de HIV são ainda mais desfavoráveis entre as mulheres negras, que, além de serem impactadas pelo racismo, sofrem com o machismo. Em muitos casos, por exemplo, não conseguem impor o uso do preservativo ao parceiro ou sair de uma relação violenta, pelo fato de serem econômica e emocionalmente dependentes.
— Existe um componente social que é o que sustenta a magnitude das doenças. No caso da sífilis, também. O Rio Grande do Sul tem uma taxa de transmissão de sífilis maior do que a nacional e as mulheres pretas são as mais acometidas. Precisamos pensar por que a mulher preta acessa menos consultas do que a branca e tem maior prevalência de sífilis, HIV e outras comorbidades que são decorrentes da gestação e do parto — diz o professor, ressaltando que 68% das mulheres pretas fizeram de sete a 10 consultas do pré-natal, conforme preconizado, contra 80% das brancas.
O difícil combate à tuberculose
Em relação à tuberculose, Paiva esclarece que se trata de uma doença reemergente, que esteve controlada durante um tempo, mas reemergiu conforme as questões de desigualdade foram se aprofundando. O professor pondera que, nesses casos, há serviços acessíveis e campanhas de conscientização, mas a adesão ao tratamento não é garantida, já que existem outras questões prioritárias na vida desses indivíduos que precisam ser atendidas, como adquirir renda para sustentar a família:
Mais do que a causa, que creio que precisa sempre ser aprofundada, precisamos trabalhar nas políticas que nos levem a ter de fato a superação do racismo na nossa sociedade.
NÍSIA TRINDADE
Ministra da Saúde
— Há toda uma estrutura que faz com que esse grupo seja mais suscetível ao processo de adoecimento e até à morte. Então para além de garantir acesso a recursos biofarmacológicos, é necessário garantir direitos, porque grupos que historicamente possuem seus direitos violados estão mais suscetíveis ao adoecimento e à morte.
Fernanda Souza de Bairros, professora do Departamento de Saúde Coletiva e coordenadora do Grupo de Estudos Saúde da População Negra (Harambee) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que o racismo afeta a população negra em todos os âmbitos da vida da população negra e não seria diferente na área da saúde.
— O racismo se dá desde a formação, onde os profissionais não têm na universidade questões de saúde da população negra, na prática (da medicina e cuidados) e sobre como esse cuidado deve ser dado. [...] A chance de a pessoa adoecer é maior por essa falta de cuidado, tanto de a doença se agravar e causar a morte também, por isso, que os indicadores expressam isso, doenças como hipertensão arterial, diabetes, doença falciforme, mortalidade materna são maiores por conta disso, muitas vezes o serviço de saúde não dá conta dessas especificidades.