Foi na música que o professor carioca Allan de Souza, que atua na rede municipal do Rio de Janeiro, encontrou uma potente aliada para levar a educação antirracista a crianças de Educação Infantil. O docente, que também é músico e usa o nome artístico de Allan Pevirguladez, compôs canções que falam de uma forma leve e lúdica sobre questões como a cor do cabelo, da pele e o respeito às diferenças. O sucesso vai além da sala de aula: os vídeos que publica, nos quais canta suas composições junto com os pequenos, têm viralizado nas redes sociais.
Nesta quinta-feira (26), o carioca participará do "Seminário Nacional 20 anos do Art. 26-A da LDBEN: Fiscalização e Desafios da Educação Antirracista", em Porto Alegre. Promovido pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), ocorrerá das 9h às 17h, no Auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, e analisará diferentes aspectos da Lei 10.639, de 2003, que incluiu o ensino em escolas de história e cultura afro-brasileira e é considera um marco na oferta de educação antirracista nas instituições.
Em entrevista a GZH, Allan apresenta seu projeto, batizado de Música Popular Brasileira Infantil Antirracista (MPBIA), que ganhará um disco, no qual estarão compiladas 10 composições com as quais ele trabalha em sala de aula. Seu objetivo é que o material contribua com a difusão da educação antirracista em escolas de todo o Brasil.
Com quais etapas de ensino você faz esse trabalho de educação antirracista?
Eu trabalho com a Educação Infantil e também com o Ensino Fundamental. Foi o trabalho com a Educação Infantil que ganhou uma repercussão realmente nacional. Mas no ano passado, no mesmo período em que eu fiz O meu cabelo é bem bonito, eu fiz uma outra canção sobre o episódio de racismo que o Vini Jr. passou lá na Espanha, e fiz uma atividade com os meus alunos do 7º ano do Fundamental. Isso chegou até o instituto do Vini. Depois, eles conheceram todo o meu trabalho, e, hoje, eu sou consultor antirracista do Instituto Vini Jr. Então, eu dou palestras de antirracismo para professores da rede pública.
Por que você acha que esse trabalho com a Educação Infantil, especificamente, repercutiu mais?
Está tudo interligado, tanto esse trabalho com as crianças, quanto o trabalho que eu faço com o Fundamental tem gerado repercussão. Esse com as crianças salta aos olhos, acho, da população como um todo, porque é algo que nunca foi feito. Podemos dizer que é uma metodologia que é leve e lúdica. Ao mesmo tempo, traz uma reflexão já nessa faixa etária, na qual a gente consegue mostrar para a criança a questão do respeito. Traz a problemática que o racismo é na vida das pessoas, aquilo que ela não pode fazer com o seu colega, que é falar mal do seu cabelo, falar mal do seu traço físico, da sua cor de pele. Então, ali dentro dessa primeira infância, a gente já traz essa noção de empoderamento e letramento racial.
Quando você começou a trabalhar com educação antirracista?
Com as crianças, eu comecei a trabalhar em 2020, que foi o meu primeiro momento ali, dentro da Educação Infantil. Eu já tenho mais um tempinho como educador, e, desde o início da minha atuação como professor, já comecei esse trabalho. Eu trabalho com música ao mesmo tempo que eu sou educador, então a música sempre foi um mecanismo que eu levei para a sala de aula, no sentido de empoderar, no sentido de trazer esse letramento racial. Na maior parte do tempo, eu trabalhei mais com os adolescentes, e, recentemente, vim trabalhar com as crianças. Aí, quando tive a oportunidade, quando senti que era o momento, eu trouxe a música, para poder fazer esse trabalho também com as crianças.
As crianças mais novas são mais abertas do que as mais velhas à educação antirracista? É mais fácil trabalhar questões raciais com elas?
Eu não diria que é mais fácil, porque eu vejo com muita responsabilidade em colocar palavras e ideias na boca de uma criança. É algo que precisa ser feito com extrema responsabilidade. A construção, o processo, é feito com muito cuidado, porque se a criança não gostar, ela não vai aderir. Então, quando eu chego com algo como uma letra de música, eu procuro cativá-las desde o primeiro momento, e eu posso dizer que, às vezes, tem uma música que você vê que funciona mais do que a outra. A criança gosta de cantar O meu cabelo é bem bonito porque ela se sente pertencente a essa questão, porque a música está falando também dela. Quando eu trago para ela essa ideia do Nada nesse mundo me dá o direito de com o coleguinha lhe faltar com o respeito, que é uma outra canção que eu trabalho também, dentro desse projeto que eu ainda não falei, que se chama Música Popular Brasileira Infantil Antirracista, essa criança está se vendo ali. Ela está se vendo e entendendo que aquelas palavras têm a ver com o universo dela. Então, não é fácil, porque todo esse processo de elaboração tem que ser feito com muito cuidado. Se eu chegar ali e trouxer uma linguagem com a qual ela não se familiariza, ela não vai querer cantar. Eles cantam porque se sentem familiarizados com aquele universo que a música traz, aquela realidade ali. Então, não é uma coisa que a gente só coloca ali "o racismo é ruim”. Não adianta. Se falar somente isso, a criança não vai internalizar e ela não vai entender. Mas quando você fala que “eu não posso xingá-lo”, “eu não devo agredi-lo", “violência é um mal que precisa ser vencido”, isso está muito mais dentro do mundo que ela vive. É assim que eu procuro criar essas letras, essas canções. É o que eu sempre falo: MPBIA é mais que cultura. MPBIA é cura. O objetivo desse trabalho é chegar antes do racismo. Chegar como esse antídoto, esse remédio, essa cura, antes que alguém chegue para a criança e fale que o cabelo dela é horroroso, que ela parece um macaco ou coisa parecida. A ideia é chegar antes de qualquer atravessamento racista e já dar a ela esse poder de entendimento: que o cabelo dela é bonito, que a cor da pele dela vale ouro.
A arte ajuda a fazer com que a luta antirracista não seja um lugar de dor?
Demais. Eu acredito muito na arte como uma ferramenta pedagógica de letramento radical e de empoderamento dessas crianças, porque eu trabalho dentro da escola com todos os tipos de criança. É criança indígena, criança branca, criança preta, criança parda. E aí, eu preciso mostrar para elas que ali dentro daquele universo, na vida delas, todas têm o seu valor. Nenhuma é superior à outra. Porque a ideia do racismo é justamente essa: a branquitude se colocar como superior aos outros pares raciais, e não pode ser isso. Eu não vou falar dessa maneira para a criança, mas eu mostro, a partir das músicas, que todas elas têm o seu valor, e que todas elas precisam ser respeitadas. Dessa maneira, eu acredito que eu consiga atingi-la muito mais do que se eu falar que a criança branca não é superior à criança preta. Acho que não é por esse caminho que eu devo seguir dentro desse universo infantil. Essa é uma discussão que a gente pode trazer depois, lá na frente, no final da adolescência, em que a mente dessa pessoa já vai estar mais formada, mais madura. Mas, nesse universo, a gente precisa trabalhar com essa ludicidade, com essa perspectiva, valorizando todos, porque, assim, essas crianças vão crescer entendendo que o respeito é fundamental, independente de cor de pele, de cabelo ou de traço físico.
Você trabalha há 17 anos como professor e, neste ano, a Lei 10.639, que inclui o ensino em escolas de história e cultura afro-brasileira, completou 20 anos em 2023. Como, ao longo desse tempo, você percebe que se deu essa criação de espaços para a educação antirracista nas instituições?
Eu acredito que se deu com muita luta, porque lá no começo do magistério, quando eu comecei a atuar em sala de aula, eu levava a linguagem do hip hop, do rap, para empoderar meus alunos, e isso, às vezes, causava um certo espanto, porque a maioria das pessoas na escola não tinha esse entendimento da importância de trazer esses movimentos que são sociais e, ao mesmo tempo, trazem também essa educação, esse letramento, para dentro da escola. Eu percebo que hoje, por exemplo, o que eu faço, tem uma liberdade e um respeito maior do que há 10 anos. Era muito mais novidade e havia até um estranhamento para outros colegas, para pessoas que estão dentro da comunidade escolar, porque era algo que ainda não tinha sido trabalhado e nem colocado como importante. E aí, dentro dessa minha prática, quando você fala da 10.639 uma coisa muito importante que precisa ser utilizada é isso. Existem muitos estudos, muitas teorias, mas a gente ainda tem poucas situações práticas efetivas que estejam acontecendo dentro das salas de aula, dentro das escolas, nessa perspectiva de educação antirracista. Quando eu trago a MPBIA para dentro da escola, com a criança na primeira infância, eu tento mostrar que dá para a gente fazer isso na prática. Você viu nos meus vídeos que não tem nenhum instrumento musical, nenhum efeito especial: é simplesmente a oralidade, a transmissão de conhecimento, dessa narrativa, que pode ser feita não só por mim, que sou músico e educador, mas por qualquer outro profissional da rede escolar.
Você está lançando agora um disco infantil, com essas músicas que viralizaram nas redes sociais. Como será esse material?
Este será o meu primeiro disco infantil. Eu tenho outros discos, mas não são infantis. Vai ser o MPBIA Volume 1. São 10 faixas falando sobre as questões raciais por diversas perspectivas: o racismo recreativo, o racismo religioso, a questão do próprio colorismo. Tem música falando também sobre empoderamento, sobre autoestima, sobre a solidão que, às vezes, essas crianças passam dentro da escola. Eu sou suspeito para falar, mas eu acho que é um disco que pode contribuir muito para toda a rede escolar do Brasil, porque eu vejo a educação antirracista como algo que precisa ser trabalhado em todas as regiões desse país, e fazer com que as pessoas tenham esse letramento, para que tenhamos um mundo melhor, mais saudável, com uma convivência mais harmoniosa entre todos esses pares.
Você falou antes sobre a necessidade de encontrar a linguagem certa para trabalhar o letramento racial com crianças, e que não adianta só dizer “o racismo é ruim”. Como se faz isso? Através da música? Da arte? Depende da faixa etária?
Eu acredito que a arte tem um poder de penetração no imaginário da criança mais poderoso do que qualquer outro tipo de manifestação ou de discurso. Em uma fase de final de adolescência para a maioridade, você pode trabalhar essa questão do antirracismo a partir de textos, de vídeos, de outras perspectivas ou narrativas. Mas a música tem um poder de penetração no imaginário do ser humano maior que qualquer outro tipo de manifestação. E na infância, nesse primeiro momento, com essa criança que ainda está entendendo o mundo, com três, quatro, cinco, seis anos, é importante que a gente chegue de uma maneira leve, lúdica, que a gente traga esse tipo de reflexão por uma perspectiva que não seja agressiva, que não a coloque como responsável por aquele contexto, porque ela ainda está entendendo, mas já pode sofrer um atravessamento. Um coleguinha pode falar mal do cabelo dela, da cor dela, falar que não quer dar a mão para ela. Essas são situações de que eu já tive conhecimento dentro da escola, e os meus alunos não têm vivência, nas minhas turmas, em termos de racismo. Mas o trabalho que eu faço aqui é semanal e ininterrupto, e acredito que ajude muito, nesse sentido. É uma coisa que eu preciso frisar: o antirracismo não pode acontecer somente nos meses de maio e novembro. Ele precisa acontecer durante todo o ano letivo, e aí, justamente, é preciso trazer um repertório que ajude nessa questão. Eu uso a música.