À primeira vista, uma lei que inclui o ensino em escolas de história e cultura afro-brasileira pode parecer uma mera questão técnica envolvendo currículo. Na prática, contudo, a Lei 10.639, de 2003, representou um marco para o início de mudanças estruturais nas instituições de ensino, para que busquem a igualdade e a oferta de uma educação antirracista, segundo especialistas. Essa foi uma das políticas públicas definidas para suprir uma carência existente desde a sanção da Lei Áurea, 135 anos atrás, no dia 13 de maio de 1888: garantir dignidade e direitos ao povo negro.
Sancionada no nono dia do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, a normativa criou dois artigos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, considerada a “carta magna” da área educacional. O artigo 79-B estabelecia, no calendário escolar, o Dia da Consciência Negra, enquanto o artigo 26-A tornava obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira em escolas públicas e privadas de Ensino Fundamental e Médio. A proposta era resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política da história do Brasil, com o tema sendo ministrado em todo o currículo, em especial nas disciplinas de Artes, Literatura e História. Em 2008, foi acrescido o ensino de história e cultura indígena.
Vinte anos depois, as formas de implementação da Lei 10.639 são múltiplas e, em muitos municípios, inexistentes. Em pesquisa divulgada em abril pelos institutos Geledés e Alana sobre a atuação das secretarias municipais de Educação no cumprimento da legislação, apenas 5% dos municípios brasileiros afirmaram ter implementado uma área técnica dedicada à agenda da educação para as relações étnico-raciais, e somente 8% das secretarias dizem ter orçamento específico para isso. Em 74% das cidades respondentes não existia um profissional ou uma equipe responsável pelo tema.
Entre todas as unidades da federação, o Rio Grande do Sul é a única na qual o Tribunal de Contas do Estado (TCE) fiscaliza o cumprimento da legislação dentro das contas anuais dos municípios. O trabalho existe há 10 anos, desde que os auditores constataram que a lei não estava sendo cumprida.
— Na época, a lei tinha 10 anos e não tinha sido feito nada para cumpri-la. Aí se procurou Ministério Público, Tribunal de Contas, Defensoria Pública para buscar possibilidades de implementação de alguma fiscalização. Desde então, esse trabalho já foi feito de várias formas — relata Andrea Mallmann Couto, auditora de Controle Externo do TCE-RS.
Atualmente, todos os gestores municipais devem prestar contas ao tribunal anualmente, especificando o que foi cumprido e anexando documentos comprobatórios das atividades. Em 2021, o TCE-RS publicou o documento "Educação Antirracista - Fiscalização e Desafios", no qual aponta que, apesar de 92% dos municípios respondentes afirmarem cumprir a Lei 10.639, a maioria (56%) não possuía legislação específica municipal e quase todos (97%) não contavam com um Conselho de Igualdade Racial. Desde o início da fiscalização, quando aplicada, a legislação costuma envolver ações pontuais, e não interdisciplinares, conforme Andrea.
— Municípios providenciaram regulamentação em nível local e incluíram alguns documentos pedagógicos com a previsão do ensino da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena, e deram algumas capacitações a professores. No tratamento da matéria, não há um trabalho interdisciplinar, como previsto. São feitas ações pontuais com os alunos sobre a questão do racismo, mas não de maneira a se avaliar que o artigo esteja sendo cumprido na sua integralidade — analisa a auditora.
Formação de professores
Para qualificar o enfrentamento de questões raciais nas Educação Básica, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) criou o curso de aperfeiçoamento Uniafro. Iniciado em 2013, começou como um projeto e, aos poucos, se transformou em um programa de extensão, voltado para professores e gestores da área da educação com o intuito de teorizar e propor ações que transformem o cotidiano das relações interraciais nas instituições de ensino.
— Percebemos que, ao longo desses anos, a discussão está mais presente, e isso se deve à percepção do racismo dentro da escola e à fiscalização do TCE-RS, que alerta redes públicas para a necessidade do cumprimento. O que me parece um desafio neste momento é colocar todas as instâncias para pensar nisso, e não só os professores — observa Gládis Kaercher, coordenadora do Uniafro e integrante do grupo de trabalho que auxilia o TCE-RS na fiscalização da lei.
Por isso, se antes o curso era voltado exclusivamente a professores, agora tem a participação de gestores, como diretores, coordenadores e secretários de Educação. O resultado tem sido positivo: diversa, a turma passou a buscar estratégias conjuntas de ações, pensando, também, na obtenção de recursos para as atividades e outros aspectos para além do pedagógico.
Gládis, que é professora titular da UFRGS e referência nacional em educação para as relações étnico-raciais, destaca três desafios na implementação da Lei 10.639. O primeiro é superar a ideia de que a legislação é voltada para pessoas negras e indígenas, e não para todos, inclusive pessoas brancas. O segundo é que haja vontade político-pedagógica de cumpri-la.
— Não é raro encontrar redes que receberam materiais, como livro didáticos, que abrangem questões étnico-raciais e não são levados para sala de aula. É preciso que haja vontade político-pedagógica de cumprir a lei não só porque é lei, mas porque há uma vontade da população brasileira de superar o racismo. E isso acontece pela educação, não só pela punição, ainda que ela também seja importante — analisa a docente.
O terceiro desafio é a destinação de recursos para os estudos de cultura e história afro-brasileira e indígena. Gládis destaca que a obtenção de recursos é possível, mas é necessário saber como pedir. Um dos módulos da formação atual do Uniafro foca exatamente nisso: o planejamento orçamentário para a aquisição dos materiais necessários.
— Criamos esse módulo porque percebemos que há orçamento dentro do Ministério da Educação que não é pedido pelos municípios, porque eles não sabem como pedir. Porto Alegre vem fazendo, nos últimos dois ou três anos, a aquisição de muito material pedagógico por meio de recurso público destinado para isso que já existia — cita a coordenadora.
Acolhimento da religiosidade
Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Deputado Victor Issler, no bairro Mário Quintana, em Porto Alegre, há sete anos o projeto BatucAção proporciona, dentro do colégio, um espaço que traz músicas, lendas e contações de histórias sobre orixás. A ideia é fazer com que crianças afro-religiosas se sintam acolhidas.
— A cultura dessa religiosidade é muito rica e tem muito a ver com a história da negritude, da resistência da população negra. Acolhê-la na escola é também uma fonte de enfrentamento para o preconceito que essas crianças sofriam no ambiente escolar — pontua a coordenadora do projeto, Letícia Farias.
Desde a porta, a sala que abriga o Espaço Educativo Afro-Brasileiro e Indígena (Eeabi) da Victor Issler é diferente das outras — o cartaz colorido, com pinturas de tambores e outros instrumentos de percussão, arco e flecha e diferentes símbolos culturais, recepciona os visitantes. Lá dentro, é normal ter crianças tocando e cantando, tendo, a sua volta, imagens de lideranças indígenas, quadros, livros e bonecas.
Quando a reportagem de GZH foi conhecer o projeto, os alunos estavam inquietos: queriam música. Uma menina interrompeu a conversa da repórter com a professora para pedir para cantarem, no que Letícia acedeu. Terminada a música, a docente perguntou:
— Pessoal, o que se comemora no dia 13 de maio?
A abolição da escravatura? Negativo. Todos responderam:
— O Dia de Preto-Velho!
A data é celebrada na umbanda e prevê festas para homenagear entidades que representam velhos negros e negras, espíritos de antepassados. Nesse dia, há música nos terreiros, para receber espíritos de antepassados escravizados no passado, e que voltam à terra para ajudar as pessoas.
No final do ano, o grupo se apresenta para toda a escola. Ao longo do ano, também faz visitas a outras escolas e apresentações dos meninos, que são alabês, ou seja, tamboreiros da religiosidade africanista. As meninas fazem a parte da dança.
— Entrei no ano passado e me apeguei. Não saí mais, porque o grupo é muito bom e a gente tem como tocar dentro da escola — conta Peterson da Rosa, 14 anos, que aprendeu com os colegas do projeto e, hoje, toca tambor também fora da escola.
O projeto é reconhecido pela Secretaria Municipal de Educação (Smed) desde 2020. Atualmente, tem duas turmas: uma de adolescentes e outra para os menores. As atividades acontecem três vezes por semana. Normalmente, é difícil abrir vagas para novos alunos, porque os que já estão no projeto não saem.
— A gente entende que esse projeto é um dos incentivadores para a frequência escolar, para o estar na escola, para o gostar de estar aqui, para o querer estar aqui. Nada como ter o seu sagrado acolhido no lugar onde tu é recebido todos os dias, que é a tua segunda casa — salienta a professora Letícia.
O BatucAção é um dos projetos estimulados pela Assessoria de Igualdade Racial e Diversidades da Smed, liderada por Patrícia da Silva Pereira desde 2021. Desde então, a assessoria conta com uma equipe de seis pessoas. Entre as atividades, são realizados passeios pelos territórios negros, em parceria com outras secretarias, para que professores e estudantes compreendam a participação da população negra na construção da Porto Alegre atual. Também existe um investimento importante em formação de professores — 25% das capacitações precisam ser vinculadas à educação étnico-racial e direitos humanos.
— Temos um entendimento de que a educação para as relações étnico-raciais, enquanto política-pública, é um pano de fundo para todo o restante da educação. As pessoas não conseguem perceber que ela está na Química, na Física, e não só na História, na Literatura. A relação de racismo passa em tudo — afirma Patrícia.
A assessora lembra que a própria ciência é racista, e que muitos cientistas negros tiveram suas invenções roubadas por brancos. Em seu entendimento, a ciência não é neutra, uma vez que é permeada por relações racistas que consolidam a estrutura da sociedade. Por esse motivo, considera que a educação precisa ser estrutura em cima do debate sobre essas relações, porque, caso contrário, não se estará formando para nenhuma cidadania.
Atualmente, a Smed tem focado em criar Espaços Educativos Afro-Brasileiro e Indígena em todas as escolas municipais de Porto Alegre, com materiais relacionados ao ensino de cultura e história afro-brasileira e indígena. O espaço foi uma invenção da própria rede. A meta era que ele estivesse implementado em 80% das instituições até o ano que vem, mas, hoje, essa meta já está batida – 82 das 99 escolas possuem o serviço. Esses ambientes contam com monitores próprios, que realizam atividades com os alunos.
Reforço à identidade e à autoestima
Localizada em uma cidade de origem germânica ao lado de Santa Cruz do Sul, a Escola Estadual de Ensino Médio Frederico Kops, de Sinimbu, percebeu que havia poucos alunos que se declaravam como pretos ou pardos. Os professores viram nisso um alerta por perceberem que o número era superior e resolveram fazer uma análise interna para entender como era a rotina desses estudantes na instituição.
— Os professores nos relataram que esses alunos acabavam se escondendo na hora de apresentar um trabalho, porque não se achavam capazes de apresentar para grandes grupos, e que não se candidatavam em atividades como a escolha da soberana da escola ou o grêmio estudantil. Percebemos que precisávamos fazer alguma coisa — conta Viviane Henn, professora e vice-diretora da Frederico Kops.
Desde o ano passado foram iniciadas, então, capacitações com grupos de professores sobre o assunto. Como há apenas uma professora autodeclarada preta na escola, pediram ajuda para docentes de Venâncio Aires, que auxiliaram em sugestões de livros e outros materiais para embasamento teórico.
Foi nesse contexto que surgiu o projeto Procuro-me, fruto de um relato de uma aluna que, ao procurar pela cidade algum local que vendesse uma boneca preta, não encontrou nenhuma. A professora Sandra Regina de Lima decidiu, então, confeccionar bonecas pretas com suas turmas, como uma forma de valorização da identidade da mulher negra e de reaproveitamento de resíduos têxteis. As peças confeccionadas são doadas e, às vezes, comercializadas a fim de angariar recursos para a aquisição de mais tecido. O projeto foi finalista do Prêmio Educador Transformador, do Sebrae.
Para além do Procuro-me, a escola se engajou, como um todo, na luta antirracista — trabalhos e palestras sobre questões étnico-raciais acontecem não só no Dia da Consciência Negra, mas em eventos de Páscoa e gincanas estudantis, por exemplo.
— Em cada trabalho que a escola faz, a educação antirracista está presente. Sabemos que o resultado disso não acontece imediatamente, e é desafiador trabalhar com esse tema em uma cidade germânica, mas isso traz esperança — analisa Viviane.
Luana da Cruz, 16 anos, tem adorado o engajamento da escola: sente que está abrindo portas para ela e outros colegas pretos.
— Faz termos voz e vontade de ir lá na frente falar, não ficar se escondendo. Cada dia mais a escola está evoluindo sobre esse projeto. Antes, só tinha soberanas brancas, pessoas brancas no grêmio, e agora está tendo negros. Estamos entrando nos lugares e querendo participar — revela a adolescente.
Para a estudante, o diferencial é que a escola não só fala, mas faz – mostra que, apesar do estigma perpetuado quando se fala em pessoas negras na televisão, “preto não é coisa ruim”, o que aumenta sua autoestima e sua vontade de fazer.
— Em uma cidade onde a maioria é de ascendência germânica, uma pessoa preta não consegue nem ser atendente de supermercado, até porque não sabe falar alemão, o que é necessário, porque tem muitos idosos que só falam alemão. Acho que um projeto como esse me dá vontade de me esforçar para ter um bom trabalho, fazer faculdade — comenta a jovem, que pretende cursar Biomedicina.
A diretora da escola, Anelise Cristina Nonnemacher, ressalta que a direção percebeu várias lacunas a serem preenchidas entre os alunos, que apresentavam insegurança, medo e autoestima baixa.
— Resolvemos intervir de forma positiva através de debates, palestras, apresentações diversas, trabalhos escritos e lúdicos. Abordar temas como o racismo, a injúria racial e o preconceito faz com que possamos contribuir para a formação de cidadãos mais conscientes responsáveis e engajados numa educação antirracista transformadora — analisa Anelise.
A busca, lá, é por um trabalho interdisciplinar, para que os professores não tratem do tema de forma isolada.
Na Secretaria Estadual de Educação (Seduc), os projetos ligados à Lei 10.639 costumam envolver formação continuada dos professores e aquisição de materiais didáticos, a fim de qualificar o dia a dia da escola. Os desafios, porém, são numerosos.
— Temos uma rede com 2,3 mil escolas de realidades muito diferentes. O desafio é que essa pauta seja transversal, de modo que todos os professores consigam trabalhar o tema. No Rio Grande do Sul, ainda temos o desafio de superar o discurso do heroísmo da branquitude. Temos regiões com baixa presença física de negros, e precisamos que o professor entenda que, mesmo lá, o estudante precisa entender o racismo — defende Sherol dos Santos, diretora do Departamento de Modalidades e Atendimentos Especializados da Seduc.
Além de oferecer uma formação contínua aos professores, o foco também é fazer um monitoramento eficiente de casos de racismo, para que a resposta seja célere, e, depois, um acompanhamento das situações.
— O racismo afeta a aprendizagem. Uma criança vítima de racismo tem esse prejuízo. Então, o currículo que implementamos na escola precisa dar conta da história afro-brasileira em todas as matérias, a fim de reeducar as relações étnico-raciais. Mostrar que somos diferentes, mas temos direitos iguais, é uma política antirracista, que não se constrói da noite para o dia — analisa Sherol.