Desde os seis meses de idade, o cachorro Stive, um shih tzu atualmente com 12 anos, sofre com crises contínuas de dermatite atópica – uma doença de inflamação crônica da pele, levando ao aparecimento de coceira e lesões. Agora, graças a uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) com o uso de óleo de cannabis, desde agosto de 2022, o cãozinho pode levar uma vida mais confortável.
A tutora Paola Gomes, 36 anos, advogada, soube da pesquisa por uma amiga. Ela sabia que a cannabis sativa poderia ser utilizada para fins medicinais, mas não tinha conhecimento do uso em animais. Assim, Stive se tornou o primeiro paciente do projeto de mestrado da pesquisadora e médica veterinária Carollina Mariga, 28 anos.
O medicamento utilizado no estudo é o óleo de cannabis amplo espectro, com alta concentração de canabidiol (CBD), que inclui todas as propriedades da planta – ao contrário do óleo de canabidiol. O produto segue os limites de composição estabelecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com predominantemente canabidiol (CBD), e não mais do que 0,2% de tetrahidrocanabinol (THC).
— Quando se fala em óleo de cannabis, se refere a todos os mais de 150 fitocanabinoides, substâncias que acabam agindo de forma sinérgica entre si, por isso a cannabis é tão potente. Os dois principais são CBD, o canabidiol, conhecido pelo uso medicinal, e o tal "vilão" THC (substância psicoativa), que tem todo aquele preconceito socioeconômico que vem sendo mantido na sociedade — explica Carollina.
Conforme o médico veterinário Saulo Pinto Filho, orientador do projeto de pesquisa e professor adjunto da UFSM, alguns veterinários prescrevem o óleo como prática integrativa, principalmente quando os tratamentos convencionais não funcionam. Porém, principalmente em função do THC e da proibição da cannabis, o uso medicinal sofre alguns entraves, ainda que a prática esteja se tornando mais comum. As pesquisas com cannabis em animais, por sua vez, são mais raras, segundo o professor.
O desejo de Carollina em trabalhar com cannabis começou em 2018, quando a médica veterinária perdeu um gato devido a uma doença intestinal inflamatória. Quando descobriu que a cannabis era uma opção terapêutica para seu pet, já era tarde, e não havia quem a orientasse sobre o assunto, que ainda era bastante misterioso.
— Infelizmente a cannabis é vista como última opção de tratamento, e na verdade é extremamente errado, porque tem de ser pensada desde o início. É um medicamento que traz tantos benefícios, mas não vai fazer milagre quando o animal já está em fase terminal. Isso é erroneamente muito pregado para nós — pondera.
Desta maneira, o interesse na pesquisa surgiu a partir da percepção de que já havia diversas pesquisas em humanos com resultados “magníficos”, bem como em ratos e camundongos, com bons impactos, mas poucos estudos em animais – principalmente no Brasil.
Quanto ao foco na dermatite atópica, Carollina explica que essa é uma das doenças mais prevalentes na rotina da clínica geral. Assim, optou-se por essa condição, por facilitar a busca para o projeto e poder auxiliar em um tratamento que avalia como “frustrante”, visto que, em muitos casos, os tutores e veterinários tentam de tudo e não veem resultados. Os corticoides podem ajudar a controlar crises da doença, mas são medicações que, a longo prazo, podem levar a outros problemas de saúde.
Resultados
Os resultados da pesquisa são animadores: verificou-se, na prática, que é possível controlar a dermatite atópica quando o tratamento com o óleo de cannabis é associado a outros cuidados. Um dos pacientes, por exemplo, conseguiu diminuir em 50% a dose do corticoide — uma medida que os pesquisadores consideram “extremamente importante” para diminuir os efeitos adversos.
— De maneira laboratorial, não teve evidências significativas de benefícios, mas clinicamente, que é uma coisa muito importante para nós, mais do que o laboratorial, teve pacientes que responderam, pacientes que não responderam e alguns que responderam parcialmente. Temos o relato de um paciente (Stive) controlado somente com o óleo, não precisa de nenhum outro tipo de medicamento, ele respondeu muito bem — avalia Pinto Filho.
O projeto de mestrado selecionou 14 animais com diagnóstico de dermatite atópica, em controle de pulga e sem outra doença concomitante e separou-os em dois grupos de forma aleatória: sete integraram o grupo controle e receberam azeite de oliva, enquanto os outros sete receberam óleo de cannabis. Nenhum avaliador sabia qual tratamento estava sendo realizado para evitar percepções tendenciosas. A médica veterinária explica que os animais foram avaliados antes e após o tratamento.
Com o projeto encerrado antes da nova etapa no doutorado, alguns tutores optaram por continuar com o tratamento. Com a prescrição de um veterinário, eles adquirem o óleo por meio de associações de pacientes. É o caso de Paola, que decidiu manter a administração do medicamento pela melhoria na qualidade de vida de Stive — esta é a primeira vez que ele fica sem medicação contínua. O custo, em comparação às outras medicações, também compensa. Ela considera a iniciativa de pesquisa de extrema importância, por ser natural e poder melhorar a vida dos animais.
— Ele está bem e não teve mais crises. Atualmente, a principal diferença é na pele e no comportamento. A pele está normal na maioria das regiões. Os resultados são notadamente positivos e sem efeitos colaterais. No comportamento, a maior diferença é que, antes do tratamento, o Stive parava de brincar, de comer e acordava no meio da noite para se coçar. Agora, ele faz qualquer atividade e nem lembra da coceira — comemora.
Burocracia
Ambos os pesquisadores avaliam que o maior desafio do projeto foram as questões burocráticas e o alto custo para a aquisição do óleo de cannabis. Foram quase dois anos para conseguir importar o óleo, em um processo inédito na UFSM e complexo — que, inclusive, acabou atrasando o mestrado de Carollina.
A gente fala sobre uma terapia mais acessível às pessoas, mais natural, menos nociva, saindo da terapia convencional, que é quanto mais medicamentos melhor, e volta um pouco a proximidade entre médico e paciente. Pegamos uma medicação extremamente segura. Quando falo em terapia canábica, só tenho sensações boas.
CAROLLINA MARIGA
Pesquisadora e médica veterinária
Como o produto não chegou a tempo, o projeto conseguiu parcerias com associações nacionais, que ofereceram o medicamento aos tutores, por também se beneficiarem das pesquisas. A importação, possibilitada pela doação de uma empresa do Exterior, será agora utilizada no doutorado da pesquisadora.
— Na realidade que a gente vive aqui, no hospital universitário, a gente atende basicamente a população de baixa renda. Os tutores não têm muitas condições — avalia o professor. — Na ponta, não é só o animal beneficiado, mas o ser humano que precisa.
Novos caminhos
A médica veterinária aguarda agora a autorização do Comitê de Ética para dar prosseguimento à pesquisa no doutorado. O objetivo será associar o óleo de cannabis com medicações convencionais, com a finalidade de diminuição de doses dos remédios, em função dos efeitos adversos e devido ao fato de serem onerosos. A estimativa é de que, em aproximadamente um mês e meio, a pesquisa esteja autorizada, e a pesquisadora comece a selecionar 20 animais para dar início ao projeto.
Para a doutoranda, a importância desse tipo de pesquisa vai muito além de pets com dermatite atópica, configurando-se como uma “quebra de tabu gigantesca”, com impactos sociais e econômicos.
— A gente fala sobre uma terapia mais acessível às pessoas, mais natural, menos nociva, saindo da terapia convencional, que é quanto mais medicamentos melhor, e volta um pouco a proximidade entre médico e paciente. Pegamos uma medicação extremamente segura. Quando falo em terapia canábica, só tenho sensações boas, porque acho que a gente tem uma gama de possibilidades magníficas que pode aumentar a qualidade de vida dos animais e das pessoas e lutar contra o preconceito — avalia.
O orientador considera que a iniciativa abre caminhos para o controle de muitas doenças, já que há pesquisas que mostram que a cannabis pode ser utilizada em diversos tratamentos.
— Alguns pacientes precisam de tratamento ad eternum, até morrer. Isso faz com que se busque alternativas de medicamentos que causem o mínimo possível de efeitos colaterais, e a cannabis se enquadra, tem efeitos colaterais mínimos, bem menores do que medicamentos convencionais. Esse tipo de pesquisa abre caminho para outras que pesquisem o uso do cannabis em outras doenças — ressalta Pinto.