Proibida para uso recreativo, a cannabis cada vez mais vem apresentando resultados positivos para fins medicinais. Esse uso terapêutico não é novidade: desde os tempos mais antigos a planta é usada para tratar problemas de saúde e amenizar sintomas.
Seu uso medicinal é descrito na China, quando apareceu na mais antiga farmacopeia Pen-ts´ao Ching, um compêndio de remédios baseado em tradições orais atribuídas ao Imperador Shen-Nung, que viveu nos anos 2.700 A.C. Era indicada para dores reumáticas, constipação, desordens do aparelho reprodutor feminino, malária, entre outros.
Na Índia, 1.000 anos A.C., a cannabis era usada como analgésico, anti-inflamatório, antibiótico, tranquilizante, anticonvulsivante e hipnótico. No ano de 1464, no Oriente Médio, há relato de uma criança com epilepsia que teria se curado após usar resina da cannabis.
Para distúrbios neurológicos, a primeira evidência de benefícios da cannabis é datada da metade do século 19, quando o médico inglês William O'Shaughnessy faz uma pesquisa com tinturas da planta, conta o biomédico Cláudio Queiroz, professor e pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), primeira e única universidade do Brasil a receber autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para plantar maconha com fins de pesquisa.
— Ele descreve vários casos clínicos, na Índia, inclusive de pacientes com crises epiléticas, que tiveram redução desses espasmos. Naquela época, não se tinha nenhum remédio para tratamentos de crises epiléticas. Era tudo xamanismo — diz o professor.
Entrou no século 19 sendo vendida em farmácias, mas, com a disseminação das políticas anti-drogas no século 20, seu uso para fins terapêuticos foi escanteado e as pesquisas que vicejavam a respeito se reduziram. Somente a partir dos anos 1960 é que são retomados os estudos envolvendo a planta. O pioneirismo é do professor israelense Raphael Mechoulam, conhecido como o pai da cannabis, que identificou duas substâncias importantes: o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC).
No Brasil, o professor Elisaldo Carlini também começa a analisar esses compostos. Os dois estudiosos passam a colaborar e descobrem o efeito antiepilético, conta o médico psiquiatra José Diogo Ribeiro de Souza, pesquisador de canabinoides há 10 anos e doutorando do Programa de Pós Graduação em Saúde na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP).
— Eles começam a testar hipóteses e entendem que o canabidiol pode ter ação anticonvulsivante. Fazem um primeiro estudo juntos, na década de 1970, em São Paulo, com poucos voluntários, e veem que de fato existe uma ação antiepilética do CBD. Só que era um período de políticas contra as drogas, e por mais que o canabidiol não seja uma substância que gera dependência, faz parte da cannabis. Então mesmo que eles tivessem chegado a uma evidência, essa pesquisa ficou escanteada, e só se volta a fazer pesquisas sobre o canabidiol duas décadas depois — explica Souza.
Evidências
A cannabis é uma planta com mais de 500 componentes. Desses, mais de cem são canabinoides, sendo que os mais prevalentes são o THC e o CBD. Enquanto o THC está relacionado ao efeito psicoativo, o "ficar chapado", o CBD não produz alteração de consciência.
— O THC tem efeito analgésico, sedativo, anti-náusea. Em alguns países, é usado inclusive em pacientes oncológicos, que passam pela quimioterapia. Porém, seu uso deve ser visto com muita cautela, uma vez que é relacionado a efeitos subjetivos e mudanças de percepção, além de alterar níveis de ansiedade e poder precipitar crises psicóticas. Já o CBD tem propriedades anticonvulsivante, anti-inflamatória, antipsicótica, analgésica, de diminuição de ansiedade. É bem tolerado, mas pode apresentar efeitos colaterais como náusea, diarreia, dor abdominal, aumento ou diminuição do apetite, sonolência e sedação — relata Souza.
Em relação ao canabidiol isolado, as evidências científicas mais robustas mostram que o fitocanabinoide tem ação anticonvulsivante em crianças acometidas por três tipos de síndromes epiléticas raras que não respondem ao tratamento convencional.
Segundo Souza, também há estudos confiáveis mostrando que o CBD somado ao THC pode ser usado para tratar a espasticidade, que é o excesso de tônus muscular, em pessoas com esclerose múltipla. Ainda assim, pode não apresentar resultado generalizado.
— Pode auxiliar na melhora da qualidade de vida de pessoas com esclerose, mas não é todo mundo que vai conseguir usar e ver esse sintoma diminuir — considera o médico.
Ainda que menos robustas, há evidências mostrando que a cannabis também auxilia em dores crônicas. De acordo com Souza, o THC atua de forma analgésica e está mais relacionado a dores neuropáticas, enquanto o CBD age em dores inflamatórias.
— Tem saído bastante estudos sobre o uso do CBD nas dores crônicas, porém os dados atuais ainda são limitados — diz.
Muito se fala sobre o CBD ser usado para ansiedade. Segundo Souza, o fitocanabinoide realmente tem propriedade ansiolítica, mas faltam estudos comprovando sua eficiência para quadros desse tipo. Não há evidências mostrando a eficácia para casos de demência, Alzheimer e Parkinson. Para depressão, os estudos ainda são rasos.
A cannabis para tratamento medicinal não deve ser fumada. A forma mais comum dos medicamentos com fitocanabinoides são em cápsulas ou óleos, sendo que, no Brasil, prevalecem esses últimos. Apesar dos benefícios já estimados até aqui, Queiroz destaca que a cannabis pode amenizar sintomas de doenças, mas não provoca a cura.
— Quando usamos o conceito de cannabis medicinal pode-se ter a noção de que a maconha cura doenças, mas, na verdade, ela mitiga sintomas. E não estamos desmerecendo a cannabis ao falar isso — reforça.