O Conselho Federal de Medicina (CFM) decidiu, em sessão plenária extraordinária nesta segunda-feira (24), revogar a resolução 2.324/2022 que restringia a indicação do uso medicinal do canabidiol (CBD). A decisão ocorre no mesmo dia em que teve início uma consulta pública para ampliar as discussões sobre o composto feito a partir da planta Cannabis sativa (maconha). O CFM havia editado a norma havia 10 dias e enfrentou fortes críticas de especialistas e parentes de pacientes que dependem do CBD. O novo texto sairá no Diário Oficial desta terça-feira (25).
Em nota pública, o conselho esclareceu que os termos da norma do dia 14 de outubro estão suspensos, “ficando sob responsabilidade do médico a decisão pela indicação do uso do canabidiol nas apresentações autorizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”.
Segundo o presidente da Associação Canábica Medicinal do Rio Grande do Sul (Ascamed), Matheus Hampel, a primeira do tipo no Estado, fundada neste ano em Santa Maria, pacientes que fazem uso do canabidiol, para além do que foi indicado pelo CFM na resolução agora revogada, manifestaram temor de ficar sem a medicação. Médicos que prescrevem a substância para diferentes problemas de saúde receavam sofrer retaliações. Pelo menos cinco associações de saúde criticaram a decisão anterior do CFM.
Segundo a resolução agora revogada, o canabidiol só seria recomendado para tratar crianças e adolescentes que sofrem de epilepsia na Síndrome de Dravet, Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa, caracterizadas por intensas e numerosas crises diárias. Estava vedado aos médicos prescreverem a substância em outras situações, além de darem palestras e cursos sobre o canabidiol fora do ambiente científico.
Segundo Hampel, a Ascamed tem cerca de 50 associados que sofrem de diferentes tipos de doenças neurológicas, como Parkinson, Alzheimer, dor crônica, entre outras. Quem precisa de prescrição pode se consultar com um dos médicos associados, que vai avaliar o caso, e, depois, receitar o medicamento derivado da cannabis. Vale ressaltar que a Associação Brasileira de Neurologia (ABE) emitiu uma nota dizendo que a substância não deve ser usada contra o Alzheimer.
Caso seja um produto nacional, é possível comprá-lo diretamente nas farmácias — desde 2019 uma resolução da Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa), a RDC 327, regulamenta a distribuição de produtos de cannabis no Brasil. Se o produto for estrangeiro, é necessário pedir autorização para importação no site da Anvisa.
Nas situações em que o paciente não tem dinheiro para comprar a medicação, é comum acionar a Justiça para obtê-la de forma gratuita. Segundo Hampel, um frasco de óleo de cannabis para tratar uma paciente associado da Ascamed, que é vítima de dor crônica, custa em torno de R$ 2,5 mil por mês, valor que varia conforme a dosagem do canabidiol. A associação atua para facilitar o acesso a esses produtos, inclusive dando consultoria jurídica.
Uso indiscriminado
Professora do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que investiga como o canabidiol pode reverter o déficit de memória em mulheres na menopausa, Nadja Schröder considera que há estudos científicos que comprovam o benefício do derivado da maconha para outras doenças além das epilepsias. No entanto, avalia que, desde 2019, quando a Anvisa aprovou a comercialização de produtos de cannabis no país, há um uso indiscriminado da substância.
— Popularizou excessivamente. Tenho conhecimento de indicações do canabidiol para os mais variados tipos de doenças, isso sem qualquer comprovação científica. Acredito que isso motivou o Conselho Federal de Medicina a restringir o canabidiol. Mas também acho que é uma restrição excessiva. O Reino Unido, por exemplo, é um país com uma legislação rígida a respeito do uso medicinal da cannabis e, ainda assim, há recomendações para além das epilepsias. Lá, o canabidiol também é utilizado para esclerose múltipla — diz.
Segundo Nadja, algo que tem se tornado frequente é fazer a recomendação do derivado da maconha para tratar Alzheimer, embora não haja pesquisa que sustente essa indicação. A própria Academia Brasileira de Neurologia (ABN) emitiu uma nota informando que não há estudos confiáveis mostrando resultados positivos do uso do óleo do canabidiol "para tratamento dos sintomas cognitivos ou neuropsiquiátricos da doença de Alzheimer, tampouco para reversão ou estabilização da doença”, diz nota da entidade.
— Há muitos estudos a respeito dos benefícios do canabidiol, mas não há estudo conclusivo mostrando que a substância melhora a função cognitiva no Alzheimer — reforça a pesquisadora.
Vice-presidente da Associação Brasileira de Epilepsia (Abe), o neurologista Lecio Figueira Pinto entende que o canabidiol ganhou status de milagre e passou a ser indicado para qualquer coisa, indo muito além do que a ciência já conseguiu comprovar.
— Lá em 2014, a resolução do Conselho Federal de Medicina já indicava o uso do canabidiol para epilepsias de crianças e adolescentes. Mas os médicos começaram a prescrever para tudo. Virou uma baita baderna — critica. — Como pode ter médicos prescrevendo canabidiol para Alzheimer e Parkinson se não há estudos comprovando isso? Houve uma inversão completa do que é um tratamento adequado. Não existe nenhum remédio que serve para tudo isso que estão dizendo que o canabidiol serve — diz o neurologista, reforçando que o canabidiol, quando prescrito corretamente, serve como suplemento e nunca em substituição à terapia tradicional.
Nesse sentido, o neurologista considera que é necessária uma legislação que deixe claro a que o canabidiol realmente se destina. Por outro lado, também entende que a resolução do CFM era bastante limitadora.
Impasse com Anvisa
Antes de emitir a nova resolução restringindo o uso do canabidiol, o Conselho Federal de Medicina enviou um ofício à Agência Nacional de Vigilância em Saúde, no dia 15 de setembro, pedindo que fosse revogada a RDC 327 de 2019, destinada a regulamentar a produção e a distribuição de produtos de cannabis no Brasil.
Acionada por GZH, a Anvisa informou que deve responder em breve ao ofício do CFM. Também informou que a RDC 327 apenas regulamenta a comercialização dos produtos de maconha, sem fazer indicação terapêutica, sendo que a prescrição é de competência exclusiva dos médicos. Na nota encaminhada à reportagem, a Anvisa informou que "as indicações de uso ainda não foram demonstradas em estudos clínicos apresentados à Anvisa, como ocorre com medicamentos".
Isso porque, em 2019, atendendo a um clamor social, a Anvisa decidiu criar uma nova categoria destinada aos derivados da maconha, chamada de produtos de cannabis. Por isso, esses produtos não são considerados medicamentos, já que a agência não obriga que as fabricantes apresentem estudos clínicos comprovando sua eficácia.
A Anvisa também informou que a RDC 327 é um ato independente da regulamentação do Conselho Federal de Medicina, que não afronta as leis vigentes, tendo sido publicada com o objetivo de reduzir riscos em relação ao uso de produtos de cannabis não regulamentados. Além do mais, que sua resolução é considerada uma referência para outros países.
Veja nota da Anvisa:
"A regulamentação da Anvisa veio na esteira de um grande clamor social para uso medicinal destes produtos, o qual não ocorreu apenas no Brasil, mas também na maior parte dos países do mundo, tornando-se essa questão uma discussão constante no Grupo da Organização Mundial da Saúde. Assim, vários países já publicaram regulamentações específicas para o uso de produtos obtidos de Cannabis sativa em categoria diferente de medicamento, como o Health Canada (Autoridade Reguladora Canadense) e a Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde Portuguesa), Alemanha, Austrália África do Sul, Israel e Suíça.
Para autorização destes produtos, o mecanismo que vem sendo estabelecido é garantir os requisitos de segurança e qualidade, até que os estudos clínicos sejam concluídos para autorização dos produtos como medicamentos. Internacionalmente este é o conceito praticado: permite-se a comercialização de produtos sem a completa demonstração da eficácia solicitada para medicamentos, porém, mantém-se os controles da qualidade, estabilidade e as boas práticas de fabricação que são solicitados para medicamentos. Embora não seja necessária a apresentação de estudos clínicos completos para os produtos de Cannabis, a RDC nº 327/2019 deixa claro que deve ser garantida a qualidade e segurança dos produtos.
É preciso observar que a RDC nº 327/2019 prevê uma regularização temporária para os produtos autorizados, de modo que possam ser prescritos em condições clínicas de ausência de alternativas terapêuticas, em conformidade com os princípios da ética médica, e comercializados de forma segura enquanto estão sendo concluídos os estudos clínicos. Essa autorização tem prazo definido de validade como forma também de incentivo para que os possuidores de Autorização Sanitária concluam os estudos com os seus produtos. Trata-se de um modelo alternativo, convergente às melhores práticas internacionais e às contribuições pertinentes diretamente ligadas à exigência popular para que seja legitimado o uso desses produtos para fins medicinais.