Apesar de terem trajetórias de vida bem distintas e não se conhecerem pessoalmente, Fabiano Ramos e Eloína Gonçalves Born são duas figuras muito lembradas quando o assunto é vacinação contra a covid-19 no Rio Grande do Sul. O médico infectologista formado pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) liderou, ainda em 2020, o estudo da CoronaVac no Estado. Já a aposentada, aos 99 anos, foi a primeira idosa a receber uma dose do imunizante, na noite de 18 de janeiro de 2021, durante a cerimônia que deu início à campanha de vacinação no território gaúcho.
Desde aquele dia, mais de 9,8 milhões de primeiras doses foram aplicadas no Rio Grande do Sul. Conforme dados atualizados até 5 de março pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), 89,4% dos 11.422.973 habitantes haviam recebido ao menos uma aplicação de vacina contra o coronavírus. Pouco mais de 56% estavam com o esquema vacinal completo — duas doses do esquema primário e mais uma de um reforço para indivíduos com idade a partir de três anos.
Hoje, três anos após a declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a moradora do Residencial Geriátrico Donna Care, no bairro Santo Antônio, em Porto Alegre, está com 101 anos, e já coleciona cinco aplicações contra a covid-19. Fora o problema auditivo, solucionado com um aparelho, Dona Eloína está com a saúde em dia e tem uma boa memória: lembra perfeitamente da cerimônia de vacinação realizada há mais de dois anos.
Muito vaidosa, todo dia ela escolhe a roupa que vai vestir e passa hidratante no corpo, lápis nas sobrancelhas e batom na boca, uma “maquiagem leve”, que está de acordo com sua idade, informa. Quando recebeu a visita da reportagem de GZH, em 22 de fevereiro, usava um vestido azul e acessórios da mesma cor. Também estava ansiosa para cortar e pintar o cabelo, o que seria feito ainda naquela semana.
Dona Eloína recebeu a dose bivalente no dia 17 de fevereiro, depois de ter feito as quatro injeções recomendadas para sua faixa etária. Ela afirma que não ficou com medo em nenhuma das vezes:
— Nunca tive medo de injeção, tem gente que chora para não tomar, eu não. Me sinto a mesma pessoa e é bom tomar porque evita as doenças. Se tiver que tomar de novo, eu tomo, não me faz mal nenhum. E acho que todo mundo deveria tomar.
Especialistas garantem que o avanço da imunização no decorrer dos últimos anos evitou muitas mortes e tornou possível a retomada de uma vida sem restrições. Também apontam que o rápido desenvolvimento das vacinas trouxe uma série de evoluções para o setor e de ensinamentos que poderão servir para o enfrentamento das próximas pandemias.
Os desafios e a satisfação
Aos 45 anos, Fabiano Ramos acredita que a pandemia represente o melhor e o pior momento de sua carreira como infectologista. O diretor-técnico do Hospital São Lucas da PUCRS comenta que, mesmo tendo experiência prévia, a participação no estudo da CoronaVac foi um grande desafio, que começou logo no início da pandemia, nas primeiras conversas com o Instituto Butantan, responsável pelo desenvolvimento do imunizante.
— O desafio começou antes do estudo, porque sabíamos que teríamos que estudar uma vacina nova, que já tinha pesquisas em fases iniciais, mas seria um estudo grande, com um número elevado de pessoas, em pouco tempo e em meio à pandemia, com todas as dificuldades de circulação de pessoas — recorda.
O estudo teve início em agosto de 2020 e envolveu apenas profissionais da área da saúde que, conforme Ramos, encararam o momento como uma oportunidade para mudar o rumo da pandemia. Ao todo, foram incluídos 1.363 voluntários em um período de aproximadamente cinco meses. O especialista afirma que ter participado dessa etapa de enfrentamento da crise sanitária lhe trouxe satisfação e aprendizados muito grandes:
— O sentimento é indescritível. Participar do desenvolvimento de uma vacina já é importante, ainda mais em um contexto de ser um dos principais momentos da área da saúde que vivemos até hoje na humanidade. Então, levar esperança para as pessoas que acreditavam foi realmente de uma satisfação muito grande para mim e para todo o grupo, mesmo que muitos só tenham entendido a importância disso quando viram que a vacina que ajudaram a desenvolver estava salvando vidas.
Para Ramos, as vacinas foram fundamentais para que se chegasse ao atual cenário da pandemia no Brasil. Ele também considera que esse período serviu para que as pessoas voltassem a dar importância e a confiar nos imunizantes - algo que já vinha diminuindo em relação às outras vacinas do calendário desde 2015.
Impulso no desenvolvimento de vacinas
Assim como Ramos, Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, diretora do Centro de Desenvolvimento do Instituto Butantan, e Rosana Richtmann, coordenadora do Comitê de Imunizações da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), são taxativas ao afirmar que as vacinas contra a covid-19 só foram disponibilizadas para aplicação tão rápido porque já havia estudos anteriores em andamento. Ao longo dos últimos anos, a velocidade do processo foi utilizada como gancho para a disseminação de notícias falsas sobre a segurança e eficácia dos imunizantes.
— Obviamente não é essa velocidade que as pessoas falam, que em um ano se fez tudo. Na verdade, existem estudos há muitos e muitos anos com vírus respiratórios da mesma natureza, não o Sars-Cov-2, mas semelhantes. Então, os pesquisadores já sabiam muito e já tinham desenvolvido uma série de coisas. Aí veio uma pandemia e se acelerou o processo, tudo aquilo que poderia ficar para a semana que vem, não ficou, foi feito imediatamente — resume Ana Marisa.
Rosana acrescenta que já havia se desenvolvido o esqueleto de uma vacina de vetor viral para outro tipo de Sars-Cov, que causou impactos na China anos atrás. Na época, o imunizante não precisou ser utilizado. Destaca ainda que a tecnologia de RNA mensageiro também não foi uma novidade em 2019, pois era estudada há anos. Segundo ela, os processos também foram mais rápidos porque, pela primeira vez, as fases pré-clínica, um, dois e três dos estudos foram feitas paralelamente, em função da urgência do momento:
— O que aconteceu foi a possibilidade e, principalmente, o forte investimento global para que se pudesse, em um curto espaço de tempo, seguir com aquilo que já estava sendo desenvolvido mais lentamente. Foi esse conjunto de coisas que fez com que as vacinas fossem desenvolvidas em tempo recorde e isso representou um salto enorme para o futuro da vacinologia. Depois de dois anos vacinando bilhões de pessoas, se percebe que de fato a ciência mandou muito bem, desenvolvendo em um tempo muito curto vacinas extremamente seguras.
Além dos estudos prévios, foi fundamental que o Instituto Butantan, por exemplo, tivesse condições estruturais de fazer os ensaios clínicos de fase três da CoronaVac, salienta a diretora do Centro de Desenvolvimento. Essa colaboração entre os países, utilizando o que cada um podia oferecer naquele momento, ajudou na corrida contra o tempo. Ana Marisa espera que esse ensinamento, de que não é necessário criar toda uma infraestrutura do zero em apenas um local, permaneça para o que for feito daqui para frente, já que, trabalhando coletivamente, é possível chegar mais rápido aos resultados.
Não é essa velocidade que as pessoas falam, que em um ano se fez tudo. Na verdade, existem estudos há muitos e muitos anos com vírus respiratórios da mesma natureza, não o Sars-Cov-2, mas semelhantes. Então, os pesquisadores já sabiam muito e já tinham desenvolvido uma série de coisas.
ANA MARISA CHUDZINSKI-TAVASSI
Diretora do Centro de Desenvolvimento do Instituto Butantan
Fernando Spilki, virologista da Universidade Feevale e coordenador da Rede Corona-Ômica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), ressalta que a pandemia foi a prova de foto para algo que já se pensava anos atrás: os sistemas de plataforma de geração rápida de novas vacinas. O especialista relembra que, no passado, era preciso estudar por muito tempo um determinado agente, ter domínio sobre ele e atenuá-lo. Agora, tendo a sequência do genoma e conhecimento prévio de outros vírus semelhantes, é possível gerar mais de uma plataforma tecnológica rapidamente e, em poucas semanas, ter protótipos para vacinas.
Para o professor, esse novo sistema de produção, associado ao entendimento de que a velocidade de fabricação de vacinas e de testes mudou, é muito importante para o enfrentamento de futuros vírus e pandemias:
— Essa capacidade inédita que temos hoje para estudos de genoma, resultados rápidos em imunologia e geração de novas vacinas é um legado fundamental. Isso nos trouxe um aprendizado de que funciona e de que é possível gerar vacinas em pouco tempo, desde que sejam mantidas as condições de fomento à pesquisa e à ciência.
Rosana acredita que a estrutura que foi montada para o enfrentamento da pandemia e as novas tecnologias desenvolvidas para as vacinas contra a covid-19 também abrem caminhos para outros imunizantes que estavam sendo estudados São exemplos o vírus sincicial respiratório, o citomegalovírus e diversas outras doenças, como o câncer. Mas, assim como Spilki, ela reforça a necessidade de incentivo à pesquisa e aos pesquisadores para que seja possível continuar desenvolvendo bons produtos e estar preparado para enfrentar uma futura pandemia — que ocorrerá em algum momento, só não se sabe quando e em função de qual vírus.
— Se não investirmos na pesquisa, na ciência e nos pesquisadores, vamos ser pegos de surpresa novamente e teremos o conhecimento sem aplicabilidade. E isso seria muito frustrante — comenta.
A vacinação como um divisor de águas
Rosana Richtmann recorda a história de outras epidemias e pandemias que ocorreram anteriormente para destacar que, normalmente, todas acabaram ou foram controladas por medidas relacionadas às vacinas. O melhor exemplo, conforme a especialista, é a varíola, que foi uma doença infecciosa que matou muitas pessoas no mundo e só foi erradicada graças às campanhas de imunização. E, no caso da covid-19, também foram as vacinas que fizeram com que deixássemos de ter aquele grande impacto de mortes e hospitalizações vivenciadas entre 2020 e 2021.
O Sars-Cov-2 tem tudo a seu favor: é uma zoonose, ou seja, tem ciclo nos animais, o que torna o controle muito mais difícil, é de transmissão respiratória, o que facilita a disseminação, e pode causar doença assintomática, o que também complica. Esses fatores nos levam a afirmar que o que realmente virou o jogo da pandemia para o nosso lado foi a vacinação. Isso é um consenso entre todos que acreditam na ciência e nas evidências — garante.
Se não investirmos na pesquisa, na ciência e nos pesquisadores, vamos ser pegos de surpresa novamente e teremos o conhecimento sem aplicabilidade. E isso seria muito frustrante
ROSANA RICHTMANN
Coordenadora do Comitê de Imunizações da Sociedade Brasileira de Infectologia
— Qualquer doença que se puder oferecer uma capacidade do seu organismo formar anticorpos e se defender contra aquilo, é inteligente fazer. Então, não há dúvidas de que a vacinação foi crucial e não tem discussão sobre isso. Todo mundo viu aquela quantidade de gente sendo enterrada e, quando começamos a vacinar, vimos tudo isso diminuir — complementa Ana Marisa.
Entretanto, a coordenadora do Comitê de Imunizações da SBI não deixa de apontar que os imunizantes atuais contra o coronavírus apresentam limitações, como o tempo de proteção, que julga extremamente curto quando comparado a outras vacinas, como do tétano e da febre amarela. O médico pediatra Juarez Cunha, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), concorda com Rosana:
— Com certeza a vacinação foi o grande divisor de águas. O principal foi que ela diminuiu consideravelmente a mortalidade por covid-19. Estudos mostram que milhões de óbitos foram evitados, mas é claro que gostaríamos que a eficácia fosse maior e mais duradoura, principalmente porque sabemos que, quando tem doses extras, a tendência é que, com o tempo, não se consiga atingir os mesmos percentuais que se tem na primeira dose.
Outro problema apontado por Rosana é que as vacinas não impedem a doença da forma leve ou assintomática, portanto, o vírus permanece circulando. Assim, destaca a necessidade de continuar desenvolvendo as tecnologias para conseguir chegar a vacinas melhores em um futuro próximo, não apenas para a covid, mas também para outras doenças, como a gripe, que requer imunização anual.
— Agora, temos o compromisso científico de continuar estudando e aprimorar as vacinas. Não podemos imaginar ficar vacinando a população de quatro em quatro meses. Estamos fazendo isso enquanto não tem uma vacina melhor, mas temos que ter vacinas melhores, temos que evoluir para tecnologias que sejam ágeis e capazes de nos conferir uma proteção mais longa — finaliza Ana Marisa, do Instituto Butantan.