Doenças crônicas instáveis e agravadas, impossibilidade de atendimento em unidades básicas de saúde, fila para procedimentos, pacientes vindos de outras cidades e até um fenômeno sazonal estão entre os fatores que contribuem para a atual superlotação das emergências de hospitais de Porto Alegre, que vêm operando bem acima da capacidade há semanas.
Duas das principais emergências da rede do Sistema Único de Saúde (SUS), a do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e a do Hospital Nossa Senhora da Conceição, foram procuradas pela reportagem nesta semana para que se possa entender melhor a situação de atendimento, profissionais de saúde e pacientes.
Na última terça-feira (14), GZH circulou pela emergência para adultos do HCPA. Às 8h, o setor, que dispõe de 56 leitos, tinha 134 pacientes em atendimento, o que mantinha a situação no “vermelho” (configurado a partir de 97 pacientes no local), recebendo novos doentes apenas em caso de risco de morte. O cenário se mantém nessa condição há quase um mês, desde 21 de fevereiro. A última vez que o serviço operou abaixo de sua capacidade foi em 9 de janeiro, quando reabriu após uma limpeza periódica de dutos de ar-condicionado. No Conceição, às 11h da última terça-feira, eram 87 pacientes em atendimento para 51 leitos disponíveis (leia mais sobre o Conceição no texto abaixo).
A superlotação decorre de múltiplas razões. A retomada das atividades típica de março, com o fim do período de férias de verão e a volta às aulas, é um deles. Hospital-escola, o HCPA recebe também novas equipes, que precisam se habituar. Aumenta o número de doentes crônicos descompensados, que passaram algum tempo sem acompanhamento e tratamento adequados, e de eventos agudos, como infarto e acidente vascular cerebral (AVC).
Na terça, todos os ambientes da emergência do HCPA estavam tomados por pacientes, acompanhantes e profissionais circulando em fluxo incessante. Com leitos lado a lado, que podem ser cercados por cortinas em algumas alas, a falta de privacidade e o barulho constante de aparelhos, conversas paralelas e gemidos são o grande incômodo para quem precisa aguardar. A maior parte espera por leitos clínicos, e a menor, leitos de unidade de terapia intensiva (UTI).
— O que impacta é ter cento e tantos pacientes com atendimentos já definidos, necessidade de internação e que ficam “presos” aqui — disse Daniel Fontana Pedrollo, médico emergencista e chefe interino do Serviço de Emergência do HCPA, diante da Unidade de Decisão Médica.
Essa impossibilidade de encontrar outro destino dentro da instituição faz com que alguns pacientes, na pior das hipóteses, passem seis, sete dias na emergência, tendo alta a partir dali, sem realocação. Era a condição de Arnoldo Peglow, 72 anos, internado havia cinco dias, após se sentir mal em casa, com dor no peito, falta de ar, sonolência e cansaço. Apesar da acomodação provisória, não tinha queixas.
— Conforme eles conseguem, vão acomodando todo mundo. Não fui ainda para um quarto, mas senti uma melhora enorme no cuidado. Entrei numa maca, desconfortável. A zoeira é grande, muita gente, mas é o que temos. Sinto que estão procurando melhorias — relatou Arnoldo, doente de Parkinson e com histórico de uma cirurgia cardíaca recente, já em um leito confortável. — Não me sinto desassistido. Os médicos estão sempre girando, os exames são feitos a todo momento. Isso te deixa um pouco mais tranquilo — acrescentou.
Em outra ala, monitorizada por aparelhos, encontrava-se Racheli Melo Costa, 39 anos. Chegara de Cidreira, no Litoral Norte, quatro dias antes, com complicações renais. Racheli tem o HCPA como referência e necessita de hospitalização até sete vezes por ano.
— Tive covid e precisei esperar cinco dias, arriscando chegar aqui e não poder ser atendida. Tentei a sorte e consegui, graças a Deus. Tem que ter paciência, ter em mente que o nosso caso pode não ser o mais grave. Às vezes, não tem tanto pessoal para atender paciente por paciente. Muita gente não tem sensibilidade para entender que não é um problema único, acho que é de âmbito nacional, inclusive — comentou Racheli.
Pedrollo afirma que tudo fica mais difícil com a superlotação. É necessário muito cuidado para definir quem será avaliado primeiro. Cada profissional passa a ver mais pacientes, reduzindo-se o tempo dedicado a cada um. Há mais desgaste físico em um ambiente já conturbado.
— O trabalho fica mais complexo. Você também acaba sendo sobrecarregado cognitivamente, passa a ser mais interrompido, mais solicitado pelos pacientes e pela equipe também. E, muitas vezes, os pacientes acabam ficando também mais ansiosos, mais frustrados com o atendimento e com a situação em que estão envolvidos, o que dificulta até a relação médico-paciente. É um jogo que desgasta: ter que dar atenção para muito mais coisas ao mesmo tempo e, muitas vezes, coisas que são importantes — destacou Pedrollo.
Na entrevista, o chefe interino mencionou o problema de pacientes ficarem mais tempo sozinhos, o que eleva o risco de quedas. Minutos depois, uma paciente, com vontade de ir ao banheiro, não seguiu a orientação de pedir auxílio para levantar, desmaiou e caiu. O episódio mobilizou a atenção de todos à volta. Pedrollo verificou se a mulher tinha pulso e respirava, descartando parada cardíaca. O oxímetro atestou saturação normal de oxigênio no sangue, a 100%. Sem lesões aparentes, ela foi levada para estabilização, voltando minutos depois.
— É uma cena que assusta os outros. Não ocorre quando a emergência está em um patamar correto — observou Guilherme Geib, assessor médico do HCPA.
Para Geib, resolver a questão de emergências operando acima da capacidade passa por uma ampla reorganização da rede de saúde:
— Começa nas unidades básicas de saúde, provendo o cuidado das doenças crônicas que os pacientes apresentam, e passa por uma organização dos prontos-atendimentos, para também serem resolutivos em casos desse nível de complexidade. Mais adiante, a organização hospitalar da rede de emergência, do suporte de internação, também em um número apropriado para dar conta de toda essa demanda da população. Então, não é em um único nível, uma única ação. Precisamos de ações coordenadas nos diferentes níveis de atenção.
A situação no Hospital Conceição
A reportagem de GZH foi até a porta da emergência do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre, na manhã de terça-feira (14). Do lado de fora, o lenhador Vilmar Winter, 43 anos, aguardava o irmão, Altair José Winter, 52, que estava havia cerca de uma hora e meia dentro do setor para ser atendido. Os dois costumam viajar duas vezes por semana desde Morro Reuter, no Vale do Sinos, com transporte da prefeitura, para procedimentos durante a espera por um transplante de fígado.
— Os médicos e enfermeiros dizem que não tem como fazer lá na cidade — relatou Vilmar.
O familiar conta que notou um aumento no tempo de espera após o período de Carnaval. Segundo ele, havia menos pessoas na emergência em relação ao cenário atual. Durante a visita da reportagem, não havia procura do lado de fora. Quem precisava de atendimento era orientado por um funcionário na porta e entrava para a triagem. Uma placa sinalizava que a emergência operava com restrição máxima, recebendo somente casos com risco de morte. Um segundo informativo disponibilizava os endereços das unidades que poderiam ser procuradas por quem é classificado com enfermidades menos urgentes.
David Kerber, médico intensivista e responsável técnico do hospital, ressalta que ainda é cedo para que as principais causas de procura sejam sintomas respiratórios decorrentes da temperatura. Segundo ele, os motivos que predominam são alterações do estado neurológico (suspeita de AVC, por exemplo), dor torácica e abdominal (suspeita de patologias cirúrgicas e gastroenterite).
Para a coordenadora do Núcleo Interno de Regulação, Thanize Prates da Rosa, a elevação na quantidade de pacientes que buscam a emergência se deve a vários fatores.
— O que a gente vê é que são múltiplos problemas de saúde. São doenças crônicas com agravamento. A gente vê uma busca muito grande de pacientes oncológicos. A regulação da cidade está demorando um pouco mais, porque agora Porto Alegre regula todos os pacientes oncológicos do Estado, então o paciente demora a ter um primeiro atendimento, e isso está levando muitos pacientes para as emergências — avaliou a coordenadora.
A regulação é que vincula uma pessoa a um centro de tratamento. O processo é feito pelo sistema Gercon do Estado, que gerencia as consultas e indica qual local o paciente deve buscar. Segundo Thanize, é recorrente a chegada de pessoas que estão com diagnóstico, mas ainda não tiveram esse retorno.
— Isso que acaba lotando as nossas emergências. São os pacientes que não têm regulação específica para algum lugar e descobrem um problema, como um câncer ou uma doença mais grave, e acabam vindo para os hospitais de alta complexidade, iniciando o tratamento — explicou Thanize.
A demanda dos casos de maior risco consegue ser priorizada no Hospital Conceição. A porteira Isabel Cristina Mello, 52 anos, chegou com pressão alta perto das 9h. Por volta do meio-dia, já havia realizado os exames necessários e aguardava os resultados.
— Me medicaram rapidamente. Estou só aguardando passar pelo médico. Já fiz o "eletro", o raio-X, exame de sangue. Estou aguardando para saber o que eu tenho. No posto de saúde, não vou saber — falou a paciente.
O que dizem as secretarias de Saúde
Questionada sobre a situação das emergências e o sistema de regulação, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) afirmou que “Porto Alegre tem gestão plena da saúde e é o município que organiza o sistema e serviços de saúde”.
O diretor de Atenção Ambulatorial Hospitalar e de Urgências da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre, Favio Telis, questiona esse posicionamento, citando que mais de 30% dos atendimentos são de pacientes da Região Metropolitana que procuram a Capital por não terem condições adequadas onde moram.
— São pessoas, gaúchos. Quando o sistema de saúde está com alguma situação ou problema maior, o Estado tem que participar. Não pode dizer “o problema é com o meu filho”. A situação toda tem que ser gerida em conjunto para encontrarmos soluções — defende.
Favio ainda afirma que muitas demandas que chegam à emergência poderiam ser resolvidas nas unidades básicas de saúde, mas admite que o sistema poderia melhorar para evitar esse deslocamento e conscientizar a população.
— Isso acaba sobrecarregando. O paciente pensa “vou ali, porque já saio com a medicação, não preciso ir à farmácia distrital pegar medicamento, na emergência já faço o exame”. A gente percebe isso. É algo que tem que se conversar com o setor de atenção primária para ver se a gente consegue aumentar o nível de resolutividade dentro das nossas unidades básicas.
Sobre o processo de regulação para encaminhamento do tratamento após o diagnóstico, o diretor reconhece as filas longas para agendamentos e garante que há uma estratégia em andamento que estuda realizar mutirões e novas contratações para agilizar serviços como traumatologia, oftalmologia e oncologia ainda no primeiro semestre deste ano.
— (O paciente) fica tanto tempo esperando uma consulta para poder iniciar a resolução do seu problema, que ele se agrava em casa e acaba procurando a emergência como uma válvula de escape — avalia Favio Telis.
A fila para procedimentos cardiológicos também está afetando o sistema. Telis diz que a prefeitura está prestes a assinar um aditivo de contrato com prestadores para aliviar a espera. Um dos problemas apontados é que o preço dos equipamentos no mercado não está acompanhando a tabela do SUS, por isso o município vai destinar R$ 600 mil, nos próximos dois meses, para que Instituto de Cardiologia, Hospital São Lucas e Santa Casa reponham a diferença dos valores. Conforme o diretor, o Cardiologia é responsável por 60% dos procedimentos cardíacos na Capital, o que acaba refletindo na demanda de outros hospitais, como Clínicas e Conceição.
Entre os relatos recebidos pela reportagem, há o de um paciente que sofreu infarto durante a internação de mais de 50 dias em uma emergência, esperando por um cateterismo. Trata-se de um procedimento com chance de alta em poucos dias, liberando a vaga.
— Podemos estar, com essa demora, provocando outros problemas nos pacientes. Sabemos disso e nos angustia para resolver o mais rápido possível — frisa Telis.
O que diz o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers)
“Emergências superlotadas fazem com que médicos e pessoal responsável pelo atendimento acabem assoberbados, com sobrecarga. Isso já foi notado na pandemia, quando houve burnout dos médicos, o que trouxe sequelas importantes para a categoria. Muitas vezes, são atendimentos que poderiam ser resolvidos em ambulatórios e unidades básicas, que também estão com problemas, pelo modelo adotado. Nossos colegas acabam tendo que resolver em menos tempo coisas que precisariam de mais tempo. São mais pacientes, e isso pode influir na qualidade do trabalho. Em relação ao SUS, estamos propondo uma rediscussão da gestão e do tipo de financiamento. Quando tivermos mais recurso financeiro, teremos mais serviços de emergência atendendo pacientes do SUS. Outra coisa é o modelo de saúde: estimular prontos-atendimentos e unidades básicas de saúde a serem resolutivos.”
Marcos Rovinski, presidente do Simers
O que diz o Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs)
“Os colegas estão dependendo de remanejo de outros setores, mas nem sempre se consegue que outros setores venham suprir. Estão no limite do estresse. Pagam hora extra, mas as pessoas estão cansadas, muito sobrecarregadas, já vêm de um processo de cansaço em função da pandemia. As pessoas que trabalharam com contratos emergenciais na pandemia já foram dispensadas. Você trabalha no limite do erro. Com menos profissionais, por mais que você dê uma assistência de qualidade, não consegue dar assistência. E normalmente você está atendendo pacientes só com risco de morte. Não há leitos para fazer esses pacientes subirem (para outros setores), então acabam ficando os graves também na emergência. O que temos que conseguir é fazer com que a mídia divulgue que os pacientes menos graves não procurem as emergências, que comecem a procurar os postos de saúde. Principalmente em Porto Alegre, o atendimento de saúde está bem debilitado, bem precário nos postos. Falta profissional. A população não consegue atendimento e acaba indo às emergências, também por ter aquela ideia de imediatismo: ‘Eu vou para o hospital e já saio com exames, com as coisas mais resolvidas’. Um exame físico bem feito, às vezes, pode resolver as coisas, sem precisar de exame laboratorial ou de imagem.”
Cláudia Franco, presidente do Sergs