O polêmico projeto de lei (PL) que pode autorizar a venda de medicamentos sem receita em supermercados, em tramitação na Câmara dos Deputados, opõe dois setores gigantes do comércio e calibra a discussão sobre os riscos da automedicação. Entidades do setor farmacêutico se opõem veementemente à proposta.
De autoria do deputado federal Glaustin da Fokus (PSC-GO), o PL 1.774 é de 2019, mas a discussão já se estende por anos. O objetivo da iniciativa, conforme o parlamentar, é facilitar o acesso da população a fórmulas para tratar sintomas e condições de baixa gravidade. Profissionais da saúde contra-argumentam apontando os riscos do uso indiscriminado dos chamados medicamentos isentos de prescrição (MIPs), o que pode banalizar o consumo, provocar intoxicações e aumentar o número de internações hospitalares evitáveis, impactando o Sistema Único de Saúde (SUS) e também a rede privada de assistência.
Na semana passada, o plenário da Câmara rejeitou o requerimento de urgência, com 225 votos favoráveis e 222 votos contrários. Eram necessários 257 deputados para a aprovação do pedido. A proposta agora aguarda análise de duas comissões, a de Seguridade Social e Família (onde está no momento) e a de Constituição e Justiça e Cidadania. No caso de ser aprovado em ambas, poderá seguir diretamente para o Senado, sem passar pelo plenário, a menos que haja recurso contra a tramitação conclusiva nas comissões.
“Venceu a mobilização dos farmacêuticos”, celebrou o Conselho Federal de Farmácia (CFF) no site da instituição. “A categoria atendeu prontamente ao chamado do CFF, dos conselhos regionais, da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar) e dos sindicatos espalhados por todo o país e foi à luta pelos votos contra a proposta”, diz a publicação.
A importância do papel do farmacêutico é um dos pontos centrais das críticas. De acordo com o presidente do CFF, Walter da Silva Jorge João, “mesmo diante da pseudo-responsabilidade técnica anunciada pelos supermercados, hoje temos em vigor uma lei que prevê a presença do farmacêutico na farmácia durante todo o tempo de funcionamento desses estabelecimentos, e ainda assim enfrentamos problemas”. Segue o presidente: “Alguém alguma vez já viu o médico veterinário responsável pela inspeção da carne no mercado quando foi fazer a sua compra? Medicamento não pode ser escolhido como se escolhe marca de arroz”.
A Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) se pronunciou em comunicado na véspera da votação na Câmara, destacando “intensa pressão do setor supermercadista” e rebatendo os supostos benefícios da mudança, como barateamento de custos e aumento da concorrência. “São argumentos rasos e injustificáveis. Os MIPs já estão disponíveis nas mais de 90 mil farmácias presentes em território nacional e, mesmo fora das gôndolas, envolvem o apoio de um profissional farmacêutico em 77% das ocasiões. As peças que lançamos nas redes sociais reforçam que a saúde dos brasileiros não pode ser cuidada pela vendinha da esquina”, disse no informe à imprensa o CEO da Abrafarma, Sergio Mena Barreto.
Uma das peças a que Barreto se refere mostra a pergunta: “Quem está mais preparado para orientar sobre qual medicamento seu filho pode tomar?” Duas opções de resposta são apresentadas, “o açougueiro” e “o farmacêutico”, com um X assinalando a segunda. “Diga não a medicamentos fora da farmácia”, lê-se em um destaque em vermelho.
Mena Barreto reforça seu posicionamento no tom da campanha veiculada na internet: “Quem vai dizer se o xarope pode ser utilizado pela criança? O açougueiro? E quem vai alertar que o MIP causa sonolência? O padeiro? E que determinado analgésico e antipirético não pode ser utilizado na dengue, por exemplo. Será que o caixa vai dizer isso ao consumidor? A pandemia nos ensinou que lugar de medicamento é na farmácia”.
Monitoramento da Abrafarma, citado no comunicado pela instituição, aponta que pelo menos 2.670 itens, como antissépticos bucais, escovas de dente, fraldas descartáveis e desodorantes, são mais caros em supermercados do que em farmácias. “Por que supermercados e estabelecimentos similares venderiam medicamentos mais barato do que as farmácias se vendem mais caro nas diversas categorias concorrentes?”, prossegue o CEO.
Em trecho dirigido aos deputados, a Abrafarma ressalta que as 90 mil farmácias do país respondem por 2 milhões de empregos diretos e que 65 mil desses estabelecimentos são optantes do Simples Nacional, regime tributário para micro e pequenas empresas. “Aprovar MIPs em supermercados, apenas para lhes dar mais uma categoria de vendas, é ferir de morte todo um contingente de famílias e colocar o equilíbrio econômico de todo um setor que funciona bem em risco”, destaca o pronunciamento.
GZH também fez contato com o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB), mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
O que diz o setor dos supermercados
Antônio Cesa Longo, presidente da Associação Gaúcha de Supermercados (Agas) e vice-presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), diz que o debate traz uma confusão com o que poderia ser vendido no mercado. Ele reforça que os produtos que o setor quer comercializar são aqueles que não precisam de prescrição médica. Esse trabalho, conforme Longo, seria similar ao que é feito hoje nos estabelecimentos.
— Os supermercados possuem responsáveis técnicos, como engenheiros de alimentos, nutricionistas. Nós teremos um responsável técnico para orientar e se responsabilizar pela exposição e procedimentos (dos medicamentos). Temos uma cartilha de adequação aos mesmos processos da farmácia. A segurança sanitária será responsabilidade nossa — comenta.
O presidente da Agas diz que, se permitida a venda, o lado econômico dos mercados não terá tanto impacto. Isso porque ele calcula que os medicamentos sem prescrição poderiam representar 0,2% das vendas do setor. Por isso, ele argumenta, que a defesa pelo comércio desses produtos é uma forma de melhorar o acesso aos medicamentos sem prescrição a pessoas que moram em cidades ou locais com poucas farmácias.
— O mercado abrange pontos mais distantes. Nossa preocupação é com o consumidor e com a redução de preços que vai acontecer. Viemos para ajudar, devolver renda ao consumidor e dar certeza de que ele vai pagar mais barato no supermercado — pontua Longo.
O presidente da Agas diz que a reclamação das farmácias no tema é "corporativismo" e "reserva de mercado", cenário que prejudica os clientes. Sobre um eventual descuido com a venda de produtos nos supermercados, ele entende que a forma como os remédios sem prescrição são comercializados hoje apresentam riscos que não são debatidos.
— Nosso objetivo é proporcionar que o cliente não tenha uma farmácia caseira, com medicamentos vencidos em casa, acessíveis às crianças. Hoje há problemas de intoxicação e não é culpa dos mercados, mas da situação atual — finaliza.
O que prevê o projeto de lei
- O projeto de lei 1.774/2019 autoriza supermercados e estabelecimentos similares a vender medicamentos isentos de prescrição (MIPs), ou seja, aqueles sem necessidade de receita médica.
- Autor do projeto, o deputado federal Glaustin da Fokus (PSC-GO) argumenta que o objetivo é facilitar o acesso da população e que o MIPs são destinados ao tratamento de sintomas e condições de baixa gravidade.
- O projeto, que altera a lei sobre controle sanitário de medicamentos e insumos farmacêuticos (Lei 5.991/73), já havia sido proposto na legislatura anterior (PL 9.482/18) pelo ex-deputado Ronaldo Martins (PRB-CE).