A afirmação do presidente Jair Bolsonaro de que o Ministério da Saúde planeja rebaixar, neste momento, o status da covid-19 no Brasil para endemia é um erro, segundo epidemiologistas - cientistas especializados no assunto - ouvidos por GZH nesta quinta-feira (3). Além de ser epidemiologicamente um equívoco, uma eventual mudança de nomenclatura desejada por Bolsonaro poderia levar a um problema objetivo: a redução de medidas de proteção por gestores e pela população, acrescentam os estudiosos.
Desde março de 2020, por avaliação da Organização Mundial da Saúde (OMS), o mundo vive uma pandemia, diante da rápida expansão, imprevisibilidade e danos causados pela covid-19. Na prática, o status de pandemia resume um cenário em que vários países no mundo, entre os quais o Brasil, registram simultaneamente epidemias de covid-19, isto é, séries de surtos imprevisíveis da doença.
Já em um cenário de endemia que, segundo especialistas ouvidos por GZH, não se aplica ao momento atual da covid-19 no Brasil, há previsibilidade e números com alguma estabilidade.
– Pela definição técnica, ainda não seria uma endemia. Endemia significa que os níveis da doença são estáveis e que vão se repetir, em determinado nível, todos os anos. Uma doença endêmica é uma doença sobre a qual se tem uma previsão, todos os anos. É difícil dizer isso agora. A gente não sabe o que vai acontecer ainda. Estamos em um momento de queda (de indicadores), mas ainda não chegamos nem perto do que tivemos no melhor momento. Além disso, dizer que é uma endemia não diminuiria a gravidade dos casos – explica Lucia Pellanda, reitora e professora de epidemiologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Ricardo Kuchenbeker, epidemiologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), elenca uma série de elementos que impedem que o status atual da covid-19 no Brasil seja alterado, no momento, para endemia. O primeiro deles é que, para se apontar uma mudança de status para endemia, é preciso ter clareza sobre o comportamento da doença dentro de uma série histórica, o que não é o caso brasileiro por conta de uma política de testagem falha que não dá conta de monitorar os casos leves e assintomáticos.
– Transcorridos mais de 20 meses, não há previsibilidade. A primeira razão é que nunca conseguimos fazer testes para estimar a real taxa de infecção. Sempre partimos do monitoramento de casos graves. Os casos leves, em parte, desconhecemos. Segundo, se a gente não conhece a prevalência da doença na população, não sabemos se temos altas ou baixas taxas da doença circulando. Fica difícil estabelecer se temos níveis endêmicos ou epidêmicos – aponta Kuchenbeker.
O epidemiologista acrescenta que, além do surgimento repentino de novas variantes, a atual cepa predominante, a Ômicron, ainda é pouco conhecida dos cientistas.
– Terceiro: um país continental não tem uma única curva, mas várias curvas acontecendo em paralelo. Basta lembrar do pico no Amazonas, depois no Sudeste etc. É muito difícil estabelecer uma endemia, agora, com esse grau de incerteza. A quarta razão é que estamos com uma doença que tem produzido variantes, muito frequentemente, e cada variante tem um comportamento distinto. A quinta razão é que a gente ainda nem conhece totalmente o comportamento da Ômicron, com a qual estamos convivendo de dezembro para cá. De uma maneira muto clara: não temos conhecimento suficiente sobre os níveis de circulação do vírus no nosso país e suas variações a ponto de estabelecer parâmetros seguros de endemicidade – aponta Kuchenbeker.
Os especialistas destacam que a covid-19 poderá futuramente ser compreendida como uma endemia, mas que não é possível ainda dizer quando esse status será adequado para classificá-la em cada país.
– Ainda não chegamos ao ponto de endemia. Acho que chegaremos lá, mas ainda é cedo – avaliou Paulo Petry, epidemiologista e professor da UFRGS.
Mudança também pode dificultar comunicação
Os estudiosos ouvidos pela reportagem ainda apontam que, atualmente, já há dificuldade para comunicar à população os riscos da covid-19 e para implementar as medidas de proteção. Assim, um rebaixamento de status poderia transmitir a sensação de que os riscos sumiram, em um momento em que ainda há patamares preocupantes de internações e mortes.
– Uma eventual mudança de status teria várias repercussões do ponto de vista da saúde pública e do comportamento das populações. Do ponto de vista da saúde pública, é provável que caia a obrigatoriedade do uso de máscaras. Que mensagem isso daria em um contexto de desinformação, de fake news? Pensa que temos 2,5 milhões de gaúchos que ainda não completaram o seu esquema vacinal – diz Kuchenbeker, lembrando que o Brasil ainda vive média móvel de cerca de 500 mortes por dia, pela doença.
A professora de epidemiologia Lucia Pellanda acrescenta que uma alteração de nomenclatura, por si só, não vai fazer com que desapareça o risco atual provocado pela covid-19:
– Não adianta mudar o nome porque a doença continua a mesma. Na verdade, o termo oficial faz diferença especialmente para a comunicação. Se mudar o termo representar que as pessoas vão cuidar menos, acho muito perigoso mudar o termo – destaca Lucia.