GZH consultou especialistas de diferentes áreas da saúde para esclarecer trechos da bula do imunizante da Pfizer/BioNTech que estão causando dúvidas, especialmente em debates nas redes sociais. Em alguns casos, as informações copiadas do documento original, disponível na internet, estão corretas, mas o que falta, na opinião de especialistas como o médico infectologista Claudio Stadnik, da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, é dizer que a bula de praticamente todo medicamento ou vacina precisa listar, obrigatoriamente, todos os problemas possíveis:
— A bula tem que prever tudo que possa acontecer de errado, mesmo que nunca aconteça. Geralmente, a bula é um exagero. Isso faz parte da ciência, pensar em todos os pontos. Não quer dizer que não tem estudo. Tem estudo muito benfeito com a vacina contra a covid-19, dizendo que ela é altamente eficaz e segura.
No Brasil, a resolução 47/2009 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estabeleceu duas versões de bulas de medicamentos: para pacientes e para profissionais de saúde. Acompanham os produtos comprados nas farmácias as bulas para pacientes, com um texto reduzido e mais acessível para o público em geral. Esses documentos, que precisam de aprovação da Anvisa, são resumos de dossiês com milhares de páginas.
A mensagem mais importante é: quando um medicamento ou vacina é aprovado para utilização da população, estão asseguradas a eficácia e a segurança dentro das condições previstas pelo fabricante. Não existe droga isenta de efeitos adversos, em diferentes níveis de frequência de ocorrência (de comuns a raríssimos). Na equação riscos versus benefícios, o bem que pode proporcionar é muito superior a eventuais males, reforçam os especialistas.
O farmacêutico Cabral Pavei, professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), aponta que nunca houve debate mundial tão grande sobre um produto farmacêutico. É bem-vindo o interesse da sociedade em relação a dados tão importantes, mas é delicado indicar que todos devem se deter em uma análise detalhada.
— Essas informações são pertinentes sempre, mas dependem do nível de interpretação de cada um. Quem quiser ler a bula antes de levar seu filho para ser vacinado e tiver dúvidas deve acionar o pediatra. Busque uma, duas, três opiniões, mas, em hipótese alguma, deixe de vaciná-lo — orienta Pavei.
Efeitos adversos da dipirona e do paracetamol, por exemplo, amplamente comercializados no Brasil, também constam das bulas. A dipirona é proibida em diversos países devido ao risco de agranulocitose, redução expressiva dos glóbulos brancos (ou leucócitos, que integram o sistema de defesas do corpo). A farmacovigilância nacional monitora a utilização do remédio, cujos benefícios, como o baixo custo e a resposta expressiva em quadros febris, ainda possibilitam a utilização, segundo Pavei. Quanto ao paracetamol, pode provocar lesão hepática (no fígado): o consumo a partir de quatro gramas por dia já é arriscado.
Os trechos comentados, a seguir, foram extraídos da versão da bula da vacina da Pfizer - vale destacar que é a mesma usada para crianças e adultos - destinada a profissionais de saúde (pode ser acessada na íntegra neste link). Já a bula para os pacientes está neste link.
Genotoxicidade/Carcinogenicidade
"Não foram realizados estudos de genotoxicidade nem de carcinogenicidade."
Na sequência imediata, a descrição deste item informa: "Não se espera que os componentes da vacina (lípidos e mRNA) tenham potencial genotóxico". Infectologista da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e professor da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), Claudio Stadnik resume: não foram realizados estudos de genotoxicidade nem de carcinogenicidade porque não eram pré-requisitos obrigatórios neste caso. Além disso, não eram esperadas alterações pelo fato de a vacina se utilizar da plataforma do RNA mensageiro (mRNA).
— Nosso código genético é feito de DNA, que fabrica RNA, que coordena a fabricação das proteínas. A vacina é de RNA, ela não altera o nosso DNA, não tem capacidade de se unir ao nosso DNA. A carcinogênese é a formação do câncer, que está ligada ao DNA. Não tem como dar câncer — detalha o médico.
Pedro Giavina Bianchi, médico imunologista e alergista, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Grupo de Trabalho Covid-19 da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), explica que a genotoxicidade se refere a alteração, lesão no DNA.
— Isso só vai ser evidenciado com o passar do tempo, nem tem como fazer esse tipo de teste antes. Não houve tempo. Seriam necessários muitos anos. Tem que esperar essas células se multiplicarem durante muitos anos, às vezes, para identificar. Um remédio que uma pessoa usa uma vez não vai dar nada — afirma o imunologista, que completa:
— Mas não se espera que haja alteração: apesar de ser material genético, RNA, não é o que compõe as nossas células. Quem as compõe é o DNA. RNA é um derivado do DNA, do qual nossas células se utilizam para se comunicar e mandar mensagens. Nosso DNA fica fechadinho no núcleo da célula — completa Bianchi.
Stadnik acrescenta:
— Como os genes são feitos de DNA, não tem como o RNA entrar lá. Estamos em contato com vírus que têm DNA, como o da catapora, mas o coronavírus é RNA, não se integra à nossa célula.
Há tratamentos capazes de afetar o DNA, como a radiação emitida na radioterapia para o câncer — ainda assim, os benefícios suplantam os possíveis malefícios.
Hipersensibilidade e anafilaxia
"Foram notificados eventos de anafilaxia."
É real, verdadeiro, admite Stadnik. Qualquer remédio ou vacina pode provocar anafilaxia (reação alérgica grave que pode inclusive obstruir as vias aéreas pelo inchaço da glote), até potencialmente fatal, mas são eventos raríssimos. Uma reação anafilática — passível de ser desencadeada a partir da ingestão de remédios amplamente utilizados pela população, como novalgina ou aspirina, por exemplo — é tratável.
Quando um paciente procura um serviço de saúde, costuma responder ao questionamento sobre alergias a medicamentos. É uma forma de se fazer triagem, identificando quem tem maior risco mediante a administração desta ou daquela droga.
— O risco de anafilaxia é, de longe, muito menor do que morrer de covid — comenta Bianchi.
Fertilidade
"Não se sabe se Comirnaty (nome comercial da vacina produzida pelos laboratórios Pfizer e BioNTech) tem impacto na fertilidade."
Conforme a bula, "os estudos com animais não indicam efeitos prejudiciais, diretos ou indiretos, no que diz respeito à fertilidade feminina ou toxicidade reprodutiva". Todo medicamento passa por esse tipo de avaliação no decorrer dos anos. Mais uma vez, é necessário tempo, neste aspecto, para saber se há qualquer interferência.
— Não se tem como saber se a pessoa ficou infértil uma semana depois. Então, na bula, eles têm que dizer isso para qualquer medicamento que não tenha anos de estudos em relação à fertilidade. Não mexendo no nosso DNA e nas nossas células progenitoras, porque não tem lógica, esperamos que não interfira. Mas não se sabe, então tem que dizer. Teremos que aguardar alguns anos, mas esperamos que não (inferfira) porque não tem lógica biológica para ter esse tipo de alteração — ressalta o infectologista Stadnik.
Bianchi, docente da USP, argumenta na mesma linha:
— É a mesma história do DNA. Nossas células de reprodução, óvulo e espermatozoide, têm DNA, que passa para os filhos. Como a vacina não altera o DNA, não altera nada dos órgãos sexuais. Pelo mecanismo com que ela age, não teria por que acontecer isso.
Miocardite e pericardite
"Casos muito raros de miocardite e pericardite foram relatados após vacinação com Comirnaty."
"Normalmente, os casos ocorreram com mais frequência em homens mais jovens e após a segunda dose da vacina e em até 14 dias após a vacinação. Geralmente, são casos leves, e os indivíduos tendem a se recuperar dentro de um curto período de tempo após o tratamento padrão e repouso. Os profissionais de saúde devem estar atentos aos sinais e sintomas de miocardite e pericardite em vacinados", lê-se na bula.
Também são possibilidades reais, afirmam os especialistas consultados. Entretanto, como mostram estudos científicos, o risco para essas ocorrências é muito superior em decorrência da covid-19 do que pela aplicação do imunizante. Quando acontece a partir da vacina, a evolução dos casos é boa, na maior parte dos casos.
Mais uma vez, o que está em jogo é a superioridade dos benefícios frente aos riscos impostos por uma doença de origem infectocontagiosa que alarma o planeta há quase dois anos. As vacinas reduziram drasticamente a mortalidade e os casos graves de covid-19, incluída aí a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), associada ao sars-cov-2.
— É infinitamente mais frequente qualquer alteração pela covid do que a manifestação desse tipo de problema relacionado à vacina. E não é uma novidade em relação às vacinas. Praticamente todas as vacinas (para qualquer doença) tiveram casos de miocardite e pericardite associados — diz Bianchi, da Asbai.
Indivíduos imunocomprometidos
"A eficácia, a segurança e a imunogenicidade da vacina não foram avaliadas em indivíduos imunocomprometidos, incluindo aqueles recebendo tratamento imunossupressor. A eficácia de Comirnaty pode ser inferior em indivíduos imunocomprometidos."
Pessoas imunocomprometidas são aquelas que apresentam deficiências no sistema imunológico. A imunogenicidade é a capacidade de uma substância provocar uma resposta dessas defesas do organismo, criando anticorpos e proteção.
— Esperamos que a resposta seja menor nos pacientes imunocomprometidos e estamos usando até mais vacina (quarta dose) neles. O organismo desses pacientes não consegue estimular as defesas da mesma forma que um organismo normal — esclarece o infectologista Claudio Stadnik.