A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ligada ao Ministério da Saúde, constatou que o tratamento de covid-19 com a droga proxalutamida resultou em 31% mortes dos pacientes que participaram do estudo no Amazonas. Essa medicação ainda não está aprovada para venda no Brasil, mas foi utilizada por médicos em doentes atingidos pelo coronavírus. Aplicações do medicamento com esse fim foram inclusive feitas no Rio Grande do Sul, no Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre.
A proxalutamida é desenvolvida, originalmente, para tratamento de tumores na próstata e inibe ações hormonais. O uso dela como tratamento experimental contra a covid-19, tanto no Amazonas quanto no Rio Grande do Sul, foi realizado pela Clínica de Endocrinologia Flávio Cadegiani, de Brasília. Os resultados da pesquisa com pacientes gaúchos ainda não foram divulgados, mas a Conep se mostra contrariada com o que considera "alto índice de Eventos Adversos Graves (EAG) grau 5 no Amazonas. É o termo técnico usado para mortes. Teriam sido 200 num universo de 645 pacientes incluídos no estudo. Foram mortes por falência renal ou hepática (fígado).
A denúncia sobre a morte de 200 voluntários de pesquisa clínica com a proxalutamida feita no Amazonas foi considerada por pesquisadores da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como uma "violação aos direitos humanos" e um dos "mais graves e sérios episódios de infração ética" da história da América Latina. Um documento sobre o assunto foi divulgado no sábado (9) pela Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética-Unesco).
Conforme definição dada a GZH por Jorge Alves de Almeida Venâncio, coordenador da Conep, a mortalidade de 31% é "espantosa", na medida em que o uso da proxalutamida teria sido ministrado prioritariamente em enfermos que não estavam em situação grave, conforme critério previsto pela própria pesquisa. E as mortes de doentes de covid-19 costumam ocorrer predominantemente entre intubados nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) – que não deveriam estar incluídos no teste.
O tratamento alternativo foi aplicado em hospitais das cidades amazonenses de Manaus, Itacoatiara, Coari, Parintins, Maués, Manicoré, e Manacaparu. E teria sido implementado antes mesmo de autorização formal da Conep, vinculado ao Ministério da Saúde. A autorização dada era para testes em Brasília.
A Conep elenca o que considera irregularidades no uso da proxalutamida no Amazonas:
- A pesquisa não apresentou os termos de consentimento dos pacientes para o uso do medicamento.
- Não houve treinamento da equipe em boas práticas clínicas.
- Não houve descrição detalhada do ciclo de uso do medicamento experimental.
- Os documentos do comitê de monitoramento de dados são inconsistentes.
- Os testes aconteceram ao mesmo tempo em que um processo na Conep analisava sua nulidade.
Em relação a documentos inconsistentes, a Conep ressalta que recebeu da clínica responsável pelo estudo três informações diferentes sobre o número de pacientes testados com proxalutamida. Num primeiro momento, foi informado que 294 pacientes receberam o medicamento. Numa segunda correspondência à Conep, a clínica falou em 588 pacientes. Na terceira informação disponibilizada, o número subiu para 645 pacientes, conforme documento obtido pela reportagem.
Sobre mortes, a mesma inconstância nos números: questionada num primeiro momento, a clínica informou 170 óbitos. Depois, corrigiu para 178 óbitos e, por fim, para 200 óbitos.
Em sua defesa, o médico responsável pela pesquisa, Flávio Cadegiani, afirma que 90% das mortes foram de pacientes que utilizaram placebo (substância sem efeito, apenas usada para testes de amostragem, no lugar do medicamento efetivo).
Jorge Venâncio, da Conep, diz que o responsável pela pesquisa não informou quantas mortes foram no grupo placebo e quantas dentre os que receberam o medicamento verdadeiro. Por falta de explicações, a Conep pediu e conseguiu que o Ministério Público Federal (MPF) investigue o que considera "maquiagem" dos resultados da pesquisa.
Uma outra investigação foi aberta pelo MPF em Porto Alegre. A procuradora Suzete Bragagnolo tem tomado depoimentos a respeito do uso da proxalutamida em pacientes do Hospital da BM. A suspeita é que ela foi aplicada em cerca de 50 pacientes em um ensaio sem autorização da Conep e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser conduzido. Não há informações se ocorreram mortes dentre os que foram submetidos ao tratamento.
A Brigada Militar abriu um Inquérito Policial Militar (IPM) para investigar se o estudo no Hospital da BM foi feito sem autorização. Ainda não está concluído. O Conselho Regional de Medicina (Cremers) também abriu sindicância, não concluída, a respeito. E a deputada estadual Luciana Genro (PSOL), em nome da Assembleia Legislativa, pediu explicações ao hospital da BM sobre listas de pacientes, autorizações e fundamentos do estudo. Elas ainda não vieram.
O que diz o médico Flávio Cadegiani:
GZH tentou contato com o médico Flávio Adsuara Cadegiani, responsável pelas duas pesquisas com proxalutamida. Ele não foi localizado nos telefones disponíveis. Ao divulgar os dados preliminares da pesquisa, em março, Cadegiani afirmou que mais de 47% dos pacientes com covid-19 que tomaram placebo durante o estudo morreram, contra menos de 5% dos que tomaram proxalutamida.