A proxalutamida é um medicamento experimental, desenvolvido pela indústria farmacêutica chinesa com o intuito de tratar o câncer. Como bloqueia os receptores de testosterona, sua principal indicação terapêutica é para os tumores de próstata. Mais recentemente, no entanto, passou a ser investigada na covid-19 e teve uso defendido pelo presidente Jair Bolsonaro.
O Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul abriu uma investigação após denúncia apontar que pacientes do Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre com covid-19 teriam recebido o medicamento.
A suposição de que o medicamento poderia ter algum benefício na doença provocada pelo sars-cov-2 partiu de estudos que mostram que os homens teriam em maior quantidade uma enzima que é fundamental para a ação do vírus no corpo: a enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2).
— É onde o vírus se liga para entrar na célula. A ECA2 aumentaria, especialmente, em homens e esse efeito é atribuído à testosterona. Então, como é a porta de entrada do vírus, se diminuísse a testosterona, poderia diminuir a presença dessa enzima diminuindo efeitos deletérios. Essa é a hipótese — explica Daniela Fraga de Souza, professora de Farmacologia da Feevale.
Ainda cumprindo as etapas de estudo para seu objetivo principal, que é o tratamento de câncer, a proxalutamida não tem aprovação de nenhuma agência regulatória do mundo, complementa Ana Paula Herrmann, professora do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Por não ser aprovada, é necessário que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorize sua importação.
— É um fármaco experimental. Tem estudos em fase 3, mas ele ainda não foi aprovado —esclarece a docente da UFRGS.
Em junho deste ano, um trabalho pré-print (sem revisão por pares) afirmou que, em pacientes com covid-19, a proxalutamida reduziu em 77% a mortalidade por todas as causas ao longo de 28 dias. A taxa de recuperação do grupo que usou a substância também teria sido 128% maior na comparação com aqueles tratados com placebo.
No mês seguinte, a prestigiada revista científica Science publicou um artigo com título "Bom demais para ser verdade", em alusão ao trabalho. Apesar de mencionar confusões envolvendo a pesquisa, o texto afirma que, para alguns cientistas, a ideia por trás dessa indicação faz sentido.
Procurada pela reportagem de GZH, a Anvisa respondeu, na noite de quarta-feira (25), que "não foram solicitadas importações do medicamento proxalutamida para condução de pesquisa clínica no Brasil" e que, até o momento, a agência aprovou dois pedidos de estudo clínico, com fins regulatórios, da substância (leia a nota na íntegra abaixo).
Processo a ser seguido
Conforme fontes consultadas por GZH, para que uma pesquisa em seres humanos seja aprovada no Brasil, ela precisa ser autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), que é uma instância local que atua com regulamentação do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), que tem abrangência nacional. Esse procedimento tem como objetivo zelar pela integridade dos participantes.
— Todos os procedimentos são definidos antes de a pesquisa iniciar: objetivos, tamanho da amostra, tudo isso fica registrado — afirma Ana Paula.
Via de regra, a Anvisa não precisa aprovar qualquer pesquisa. No entanto, nesse caso, como se trata de uma droga que não tem aval para ser usada, a Agência precisaria entrar na jogada para autorizar o trabalho e, antes disso, a importação do produto.
Outro aspecto levantado por Ana Paula diz respeito ao termo de consentimento livre e esclarecido, documento que, nesse caso, deveria fornecer ao participante da pesquisa todos os dados sobre o trabalho. Aos pacientes do Hospital da Brigada Militar, esse documento teria informado, apenas, que se tratava de uso “off label” do medicamento, ou seja, para fins não descritos na bula.
— Não dá nem para falar que esse uso (na covid-19) é "off label", pois ele não tem nem bula — argumenta a professora da UFRGS.
Por fim, os pesquisadores precisam acompanhar os participantes depois do estudo, situação que também não teria acontecido no hospital da Capital.
Efeitos adversos
Todos os medicamentos são passíveis de efeitos adversos. No caso da proxalutamida, diz Daniela, pode haver problemas gastrointestinais, como diarreias e vômitos, e até prejuízos sexuais.
— Temos que ter em mente que a testosterona é importante para várias regulações, especialmente masculinas. No momento em que impedimos a ação dela, pode acarretar problemas fisiológicos.
NOTA: IMPORTAÇÃO DA PROXALUTAMIDA
A Anvisa esclarece que não foram solicitadas importações do medicamento proxalutamida para condução de pesquisa clínica no Brasil.
Foram realizadas, porém, importações de proxalutamida na modalidade de remessa expressa, entre o segundo semestre de 2020 e a primeira metade de 2021, para o desenvolvimento de pesquisa científica, ou seja, sem objetivo de registro do produto no Brasil.
Estas remessas foram localizadas no sistema no dia 25/08. A dificuldade na localização aconteceu porque o nome da substância não constava na descrição do produto no pedido de importação.
A modalidade de importação conhecida como remessa expressa permite a entrada de medicamentos no Brasil para desenvolvimento de pesquisa científica ou tecnológica envolvendo seres humanos, ou seja, sem finalidade de registro do produto sob estudo.
No pedido submetido à Anvisa, o importador declarou que o medicamento não seria utilizado em pesquisas clínicas, ou seja, não havia o objetivo de registro do produto. Importações de medicamentos para pesquisas clínicas devem ser realizadas por meio de Licença de Importação.
ANVISA NÃO AVALIA PEDIDOS DE ESTUDOS CLÍNICOS COM FINS NÃO REGULATÓRIOS
A Anvisa avalia apenas pedidos de autorização para estudos clínicos com finalidade de registro do produto.
Os aspectos éticos de pesquisas não submetidas à Anvisa devem ser avaliados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da instituição que conduz os estudos.
ESTUDOS COM PROXALUTAMIDA APROVADOS NA ANVISA
Até o momento, a Anvisa aprovou apenas dois pedidos de estudo clínico, com fins regulatórios, para o medicamento proxalutamida. Os estudos são patrocinados pela empresa Suzhou Kintor Pharmaceuticals, sediada na China.