O Comitê Científico do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS) emitiu seu primeiro parecer desde que foi instituído, em maio. A pedido da Direção de Controle e de Fiscalização, que coordena o trabalho dos auditores, o grupo se manifestou contrariamente sobre a eficácia e a efetividade de medicamentos do chamado "kit covid", suposto tratamento precoce contra a covid-19 — cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e vitamina D —, “abordando questões relacionadas à mitigação dos efeitos causados pelo coronavírus e aos eventuais danos à saúde da população, especialmente quanto aos possíveis efeitos colaterais”, conforme a requisição.
Independente e de caráter consultivo, o comitê é formado por especialistas da área da saúde ligados a universidades gaúchas e tem como missão amparar com argumentos científicos a tomada de decisões em temas relacionados à pandemia. Há profissionais representando áreas como neurologia, odontologia, bioética, epidemiologia, química e farmácia. De acordo com o TCE-RS, trata-se de iniciativa inédita no Brasil, no âmbito dos tribunais de contas.
O documento deve subsidiar a instrução de processos relacionados à compra de medicamentos pelas administrações públicas. Desde o começo da crise sanitária, o TCE-RS monitora as aquisições em caráter emergencial referentes ao enfrentamento da doença, o que deverá ser discutido no conselho no momento de julgar as contas dos gestores.
No parecer de 15 páginas, o Comitê Científico informou ter realizado busca direta na base de dados PubMed e consultado diretrizes dos principais organismos nacionais e internacionais que tratam da prevenção e do tratamento da covid-19. Como conclusão, os membros afirmaram que “há evidência de alta qualidade metodológica sustentando que o uso de cloroquina e hidroxicloroquina é ineficaz” para prevenir e tratar a infecção por coronavírus. “Pessoas expostas a esses medicamentos têm maior risco de efeitos adversos e alguns estudos sugerem até mesmo aumento da mortalidade, especialmente em pacientes hospitalizados e em uso de doses elevadas”, lê-se no texto.
Quanto à ivermectina e à vitamina D, “não existem estudos de qualidade metodológica suficientes para afirmar ou negar a eficácia dessas intervenções na prevenção e no tratamento da covid-19”, destaca o relatório. “O uso clínico-assistencial desses dois medicamentos não se justifica, exceto em protocolos de pesquisas.”
Ao final, Artur Francisco Schumacher Schuh, Carlos Heitor Cunha Moreira, José Roberto Goldim, Lucia Campos Pellanda, Nádya Pesce da Silveira, Pedro Curi Hallal, Priscila de Arruda Trindade, Simone Dalla Pozza Mahmud e Thiago Machado Ardenghi ressaltam que o parecer foi elaborado com a finalidade de responder ao questionamento do TCE, não se referindo a prescrições individuais de médicos. Mas alerta: “As evidências atuais não justificam a utilização dos fármacos analisados em qualquer política pública ou protocolo assistencial para a covid-19”.
Lucia, médica e reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), detalhou, em entrevista a GZH, a diferença entre a prescrição individual e o uso de recursos para uma recomendação de saúde pública:
— Na prescrição individual, no encontro entre médico e paciente, o médico sempre vai fazer uma relação entre os riscos e os benefícios para cada situação. O médico nunca teve autonomia para prescrever algo sem evidências ou que pudesse ser prejudicial, mas a relação é diferente porque leva em conta vários fatores individuais e também os valores e as preferências do paciente. Mas quando é uma questão populacional, precisamos ter um nível de evidência muito maior. Com recursos escassos para a saúde, sempre que você aplicar em uma intervenção, vai estar deixando de aplicar em outra. Precisávamos de uma campanha de comunicação efetiva, um componente fundamental na gestão de uma pandemia para o engajamento da população. Medidas de prevenção são muito mais custo-efetivas do que insistir em um tratamento que não tinha absolutamente nenhuma evidência de que funcionasse.
Presidente do TCE-RS, Estilac Xavier se diz honrado com a participação voluntária de alguns dos nomes mais proeminentes da pesquisa no Rio Grande do Sul para nortear as decisões que demandarem conhecimento especializado em saúde.
— Em um tempo de negacionismo e obscurantismo, é preciso, mais do que nunca, valorizar a ciência na construção de políticas públicas exitosas — disse Xavier.