O Rio Grande do Sul figura entre os Estados com melhor desempenho na campanha de imunização com primeira dose ou esquema vacinal completo contra a covid-19 no país mas, ainda assim, registros oficiais sugerem uma abstenção significativa entre parte da população.
Na avaliação de especialistas, temores infundados sobre possíveis efeitos da vacina, a falta de uma estratégia mais ampla de comunicação e frequentes mudanças de estratégia ajudam a explicar as resistências.
Conforme indicam reportagens publicadas em GZH, até segunda-feira passada (19), 539 mil gaúchos acima de 40 anos ainda não haviam comparecido a um posto de saúde para receber a injeção inicial contra a pandemia e, de acordo com dados atualizados pela Secretaria Estadual da Saúde (SES) na noite de quarta (21), 221 mil pessoas estavam com atraso na aplicação ou no registro da segunda dose.
Essas fatias da população correspondem, respectivamente, a 2,8% e a 6,8% dos 7,9 milhões de gaúchos que precisam ser atendidos para o Estado atingir o patamar da imunidade coletiva — quando a proteção completa de sete em cada 10 habitantes barra a circulação do vírus. O problema não é exclusivo: nesta semana, o governo paulista informou que 642 mil pessoas estão com atraso na segunda dose.
Com base na experiência diária das prefeituras, responsáveis pela aplicação das injeções, o presidente do Conselho das Secretarias Municipais do Estado (Cosems), Maicon Lemos, sustenta que um dos principais motivos para a abstenção da segunda dose é o receio de reações adversas.
— Pessoas que tiveram algum efeito adverso após a aplicação da dose 1, como febre, acabam deixando de fazer a segunda. Mas o surgimento de sintomas como esse são normais e indicam que o sistema imunológico está agindo — observa Lemos.
Para o virologista da Universidade Feevale Fernando Spilki, falsas informações e temores infundados que circulam desde o começo da campanha dificultam ainda mais a adesão.
— Esses números (de abstenção) são impressionantes. Há uma falha na divulgação do que representa a eficácia das vacinas, e falta uma divulgação mais adequada sobre o que são os raros eventos colaterais — observa Spilki.
O infectologista do Hospital Conceição André Luiz Machado da Silva também crê que falsos rumores que ainda circulam atrapalham o atingimento da imunidade coletiva. Entre eles estão o risco de efeitos adversos mais sérios, que é mínimo, e falsas suposições sobre a eficácia dos produtos de diferentes laboratórios — como a de que nem todos gerariam a proteção necessária contra a pandemia.
— Em qualquer situação, o benefício supera muito qualquer pequeno risco. Não foi feita uma campanha nacional de forma adequada sobre a vacina, sobre os possíveis efeitos, que explicasse a vacinação como uma estratégia coletiva para proteger a todos — avalia Machado da Silva.
Spilki observa ainda que muitos gestores municipais e estaduais destacaram os avanços na vacinação de primeira dose, o que pode ter criado, no imaginário popular, uma sensação de que completar o esquema vacinal não era tão importante.
— No contexto atual (de novas variantes), a segunda dose é fundamental, e é isso que deveria ser trabalhado.
Para André Luiz Machado da Silva, outros fatores como mudanças frequentes nos critérios e na estratégia da campanha (como as filas por idade, atividade profissional, comorbidade, depois por idade novamente), nas formas de comprovação para ter direito à injeção e até nos prazos para aplicação da segunda dose (Pfizer já oscilou entre 21 dias, 10 e 12 semanas, por exemplo) ajudam a criar um ambiente de insegurança.
Como parte das estatísticas de atraso pode estar relacionada a uma demora no registro das vacinas, e não a uma abstenção de fato, o presidente do Cosems afirma que as prefeituras estão sendo orientadas a notificar as aplicações o mais rapidamente possível para garantir informações mais precisas. Também são adotadas iniciativas como campanhas de divulgação e busca ativa de faltantes por meio de equipes de saúde da família.
– Mas todos precisam entender que a segunda dose é fundamental. Sem ela, a pessoa fica sujeita às formas moderada e grave da doença, enquanto o avanço da vacinação prova que todos os imunizantes disponíveis são eficazes ao derrubar as internações hospitalares – completa Maicon Lemos.
Veja, a seguir, algumas das hipóteses apresentadas por especialistas para a dificuldade de imunizar parte da população e por que não justificam a ausência nas unidades de saúde.
Impacto de reações adversas
O presidente do Cosems/RS, Maicon Lemos, e o virologista Fernando Spilki acreditam que pessoas que tomaram a primeira dose da vacina e sentiram alguma reação adversa, ainda que leve e passageira, como dor local, febre ou algum mal-estar, podem ter se desestimulado a completar a imunização. Nesse caso, é importante ressaltar que a grande maioria dos eventuais efeitos é leve e passa em poucas horas, enquanto os benefícios são duradouros.
Temor de efeitos colaterais mais graves
Nos últimos meses, análises internacionais apontaram complicações possíveis, mas raríssimas, decorrentes de vacinas, como trombose. Isso despertou receio em parte da população, mas esse temor é infundado quando os dados são contextualizados. Um estudo da Universidade de Oxford, por exemplo, demonstrou que o coronavírus gera um risco de oito a 10 vezes maior de trombose do que uma vacina. Logo, é muito mais seguro tomar a injeção do que ficar exposto à doença.
“Sommeliers” de vacina
O Cosems avalia que falsas suposições sobre eventuais diferenças na eficácia das vacinas leva muitas pessoas a recusar determinadas marcas por acreditar que elas não darão a proteção desejada. Outra constatação é de que algumas pessoas tomaram a primeira dose de um laboratório e preferem esperar que seja liberada a possibilidade de complementar a imunização com o produto de outro — o que não tem previsão no país. Todos os imunizantes disponíveis no Brasil têm eficácia cientificamente demonstrada contra a covid-19 e comprovação disso pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Falhas de comunicação
O Brasil jamais montou uma campanha abrangente e intensiva de conscientização e esclarecimento sobre a importância da vacinação contra a covid-19, o verdadeiro risco de eventuais eventos adversos e a necessidade de completar a imunização com duas doses (com exceção dos produtos de aplicação única como a Janssen). Inicialmente, o presidente Jair Bolsonaro deu diversas declarações públicas no sentido contrário: questionando a eficácia e a segurança de imunizantes como a CoronaVac. Todos os estudos disponíveis demonstram que as vacinas autorizadas protegem contra a covid e são seguras para uso.
Mudanças frequentes de critério
Montada em caráter emergencial, a campanha de vacinação contra o coronavírus passou por muitos formatos diferentes, o que dificulta a compreensão das pessoas e favorece a circulação de informações equivocadas. Em diferentes etapas, foi dada prioridade a condições como idade, atividade profissional ou doença associada, com diferentes prazos de aplicação entre doses, entre outras reavaliações.
— Se tivéssemos uma campanha mais linear, talvez gerasse menos dúvidas e especulações. Mas temos de lutar com as armas que temos no momento — avalia o infectologista André Luiz Machado da Silva.