Em meio à ascensão da variante Delta do coronavírus, originária da Índia e com alto risco de contágio, laboratórios começam a estudar a possibilidade de oferecer uma terceira dose de vacina contra a covid-19. A medida, que não é consenso entre especialistas e governos, pode acirrar o mercado internacional por imunizantes e impor desafios à adesão da população.
A Pfizer e a BioNTech divulgaram, nesta sexta-feira (9), que solicitarão à agência reguladora dos Estados Unidos aval para o regime de três aplicações no país. Os laboratórios afirmam que dados de um teste em andamento mostram que uma terceira dose dada seis meses após a segunda aplicação aumenta os níveis de anticorpos de cinco a 10 vezes contra a cepa original da covid-19 e a variante Beta, identificada na África do Sul, em comparação ao regime de duas doses.
A Pfizer acrescentou que a eficácia da vacina pode diminuir seis meses após a segunda dose. Os dados ainda não foram publicados nem revisados por cientistas independentes, mas isso deve ocorrer nas próximas semanas.
Ao mesmo tempo, o Centro para o Controle de Prevenção a Doenças (CDC) e o FDA, agências reguladoras dos Estados Unidos, emitiram nota em conjunto na quinta-feira (8) informando que a segunda dose das vacinas é suficiente contra a covid-19 e que não há, no momento, necessidade de terceira aplicação.
“Pessoas com esquema vacinal completo estão protegidas de doença grave e morte, incluindo das variantes atualmente circulando no país. Pessoas não vacinadas seguem em risco. Praticamente todas as hospitalizações e mortes por covid-19 estão entre não vacinados. Nós encorajamos os americanos que ainda não foram vacinados a se vacinarem o mais rápido possível para protegerem a si mesmos e protegerem os seus próximos”, aponta a nota.
Após um período de redução no número de casos nos Estados Unidos, a curva epidêmica voltou a subir, o que parece estar associado à variante Delta, já predominante no país. No entanto, os dados mostram que as mortes de norte-americanos estão concentradas entre não vacinados – segundo o Our World in Data, 55% dos habitantes receberam a primeira dose e 47,3%, a segunda. O país usa Pfizer, Moderna e Janssen (esta, de uma única aplicação).
Nesse contexto, os Estados Unidos também discutem a possibilidade de oferecer, a quem recebeu a dose única da Janssen, uma segunda aplicação da Pfizer ou da Moderna. A sugestão foi aventada por Andy Slavitt, ex-consultor do presidente norte-americano Joe Biden sobre a pandemia.
A medida, no entanto, não é consenso na comunidade científica dos Estados Unidos nem de outros países. A Janssen estuda, neste momento, a eficácia de sua vacina especificamente contra a variante Delta.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou a GZH, por e-mail, que a Pfizer solicitou e já foi autorizada a conduzir estudo clínico sobre terceira dose no Brasil – é a única farmacêutica a testar o regime no país.
Especialistas ouvidos pela reportagem destacam que os dados atuais mostram que as vacinas protegem contra as novas cepas, desde que o indivíduo tome duas doses. Com uma aplicação, a proteção é limitada.
Essa foi, inclusive, a conclusão de estudo em laboratório publicado na revista Nature pelo Instituto Pasteur, na França, com a resposta das vacinas da Pfizer e da AstraZeneca contra a variante Delta. A pesquisa mostrou que, entre quem recebeu uma dose de uma dessas vacinas, 10% neutralizaram a nova cepa – com duas doses, a proteção subiu para 95% entre os anticorpos analisados in vitro.
A médica Flávia Bravo, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), afirma que a discussão sobre terceira dose sempre existiu, mas que, neste momento, cabe apenas a países onde grande parcela da população já recebeu duas aplicações, o que não é o caso do Brasil.
Agora não é a hora de pensar em terceira dose. Ela é uma possibilidade para todas as vacinas, em todos os países: não temos a resposta final da duração de proteção para nenhuma vacina nem resposta de faixas etárias e pessoas com comorbidades
FLÁVIA BRAVO
Médica, diretora da SBIm
— Agora não é a hora de pensar em terceira dose. Ela é uma possibilidade para todas as vacinas, em todos os países: não temos a resposta final da duração de proteção para nenhuma vacina nem resposta de faixas etárias e pessoas com comorbidades. Países adiantados e que já obtiveram (boa) cobertura vacinal com uma ou duas doses, a depender da vacina, já estão pensando nisso. Mas, agora, no Brasil, não é hora. O que temos que nos preocupar é em fazer duas doses na maior parte da população. Se você olha as curvas de incidência (de mortes), há um deslocamento para a população não vacinada — afirma.
A imunologista Cristina Bonorino, integrante do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) e colunista de GZH, destaca que os estudos atuais apontam que uma terceira dose não é necessária para proteger a população contra as variantes, inclusive a Delta, e que eventual decisão de oferecer nova aplicação precisa ser baseada em pesquisas de qualidade, feitas com a população, e não com testes in vitro.
— Os estudos mostram que as variantes levam a certa perda de quantidade de anticorpos neutralizantes, mas os que ficam não perdem a capacidade de neutralizar o vírus. Ao olhar para a resposta das células T depois da vacina, sabemos que elas não perdem a capacidade de identificar as variantes. Sempre que se vacina, aumenta o nível de anticorpos. Isso é normal. O dado importante é: dos vacinados, quantos tiveram infecção e quais variantes eram? Essa pessoa ficou doente? Que eu saiba, não temos dados sobre isso — acrescenta a imunologista.
O médico Fabiano Guimarães, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), destaca que ajustes no esquema de vacinação geram estranhamento apenas para leigos, porque a incorporação de novas doses e mudanças de calendário sempre foram comuns em diferentes imunizantes, mas não eram percebidos pela população até a pandemia.
Ele cita que a exigência de terceira dose não deve impor desafios logísticos ao Plano Nacional de Imunizações (PNI), capaz de incorporar novas vacinas. Mas reflete que, em uma realidade na qual há adesão aquém do esperado à segunda dose, uma terceira injeção pode impor desafios.
É certo que a vacina da covid terá que ser incorporada ao PNI. O que não temos resposta é: vai ser anual? Vai ser semestral? Não temos estudos o suficiente para dizer
FABIANO GUIMARÃES
Médico, diretor da SBMFC
— O problema principal é o convencimento e a eventual perda de credibilidade. Se acontecer esse processo, tudo precisa ser claro para não gerar mais desconfiança sobre as vacinas. Mas é certo que a vacina da covid terá que ser incorporada ao PNI. O que não temos resposta é: vai ser anual? Vai ser semestral? Não temos estudos o suficiente para dizer — diz Guimarães.
O médico de família acrescenta que a exigência de uma terceira dose não deve impactar nos objetivos de atingir uma imunidade coletiva.
— Mesmo nos países que discutem terceira dose, como os Estados Unidos, há queda expressiva de hospitalizações e óbitos. Ela viria como reforço para melhorar os indicadores — afirma Guimarães.
Incorporar uma terceira dose pode ser positivo, mas a exigência em um cenário no qual faltam vacinas para a população é “incoerente”, avalia Tiago Collares, coordenador da Unidade de Diagnóstico Molecular Covid-19 da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
— O aumento do número de doses obviamente reforça a cobertura vacinal para os indivíduos que receberão a ampliação da vacinação. Isso tecnicamente é bastante positivo para estimular com segurança o sistema imunológico. Por outro lado, considerando a escassez de vacinas no Brasil neste momento, seria totalmente incoerente — afirma Collares.