Primeira vacina do mundo autorizada para uso contra covid-19, a russa Sputnik V recebeu liberação parcial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na última sexta-feira (4), para ser distribuída sob condições específicas e em quantidade limitada em seis Estados (Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí e Sergipe). Poderão ser importadas doses para 1% da população de cada um dos Estados, totalizando 928 mil vacinas, incluindo a segunda aplicação.
O sinal verde não configura aprovação para uso emergencial nem definitivo no Brasil: a liberação é apenas para um primeiro lote que faz parte da negociação de 37 milhões de doses do Consórcio Nordeste com o Fundo de Investimentos Diretos da Rússia, articulado pelos governadores de seis Estados da região.
Esta aprovação parcial não tem relação com o acordo do Ministério da Saúde para adquirir 10 milhões de doses da Sputnik V, confirmou a Anvisa a GZH — portanto, nenhuma dose virá ao Rio Grande do Sul.
Para que o imunizante circule em todo o país, é preciso obter aprovação para uso emergencial referente às doses compradas pelo governo federal, algo que a agência reguladora ainda não concedeu. Isso depende de o laboratório União Química, parceiro do Instituto Gamaleya no Brasil, entregar mais dados e realizar mais estudos sobre a efetividade do produto.
A Anvisa afirma a GZH que o uso emergencial “é um processo distinto solicitado pelo laboratório União Química” e que o processo está em análise, mas depende de dados da empresa. “Conforme dados do painel de análise de vacinas 63% dos documentos estão pendentes de complementação e 15% não foram apresentados”, acrescenta a agência.
O órgão já havia recusado em ocasiões anteriores o pedido de uso emergência para o uso da Sputnik V sob a justificativa de haver problemas na condução do estudo e nas condições de fabricação. Com as negativas, o consórcio de governadores do Nordeste recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), que pressionou a Anvisa a dar nova resposta para a importação.
Para o lote destinado ao Nordeste, a Anvisa fez uma série de ressalvas e exigências. O órgão ainda afirma que a responsabilidade pela eficácia e segurança será compartilhada com a fabricante e os Estados do Nordeste responsáveis pela compra. Além disso, as doses só poderão ser aplicadas em locais onde reações adversas possam ser monitoradas e tratadas.
— Não estamos atestando qualidade, segurança e eficácia dessas vacinas. Existem pendências técnicas que precisam ser resolvidas. Contudo, a Lei 14.124/2021, que abre espaço para importação excepcional, existe e foi pensada no contexto da pandemia, por isso há recomendação de que esse uso seja controlado — afirmou, na sexta-feira, o gerente-geral de medicamentos da Anvisa, Gustavo Mendes.
Hoje, a Sputnik V é usada em mais de 60 países. A temperatura de armazenamento necessária é de -18ºC, mas, durante a aplicação da vacina, as doses podem ficar entre 2ºC e 8ºC, tal como para a vacina da Pfizer. Os ensaios de fase 3 estão sendo realizados em Emirados Árabes Unidos, Índia, Venezuela e Belarus, segundo o fabricante, o Instituto Gamaleya.
O imunizante usa tecnologia de vetor viral, que insere um pedacinho do coronavírus dentro de um adenovírus (vírus de resfriado), que funciona como vetor (veículo de carregamento) para ensinar o sistema imune a se proteger contra o Sars-Cov-2. No caso da AstraZeneca e da Janssen, é um adenovírus e, na Sputnik V, dois adenovírus diferentes.
Quando o sistema imune identifica o pedacinho de coronavírus e o adenovírus que funciona como vetor, as células de defesa atacam ambos os invasores, o que em última instância reduz a eficácia da vacina.
O pulo do gato da Sputnik V é usar um vetor diferente em cada dose (chamados de D-26 e D-5) para que, na segunda aplicação, o sistema imune não tenha tanta força para atacar o adenovírus — essa sacada parece estar ligada à maior eficácia do imunizante russo, acima de 90%.
— Sabemos que o corpo pode realizar uma resposta contra o vetor adenoviral. A combinação de dois diferentes pode ser uma estratégia para minimizar isso — afirma a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, doutora em Neurociências e coordenadora da Rede Análise Covid-19.
Público restrito
Para não causar problemas, o adenovírus é modificado geneticamente e não se replica, um processo trivial usado para a Sputnik V, a AstraZeneca e a Janssen. A questão é que a Anvisa afirma que o nível de replicação do adenovírus dentro das células é maior do que o normalmente aceito para os padrões brasileiros, um dos motivos pelos quais impõe entraves à importação em massa.
A Sputnik V não será indicada para quem tem hipersensibilidade a qualquer um dos componentes da fórmula, grávidas, lactantes, menores de 18 anos, mulheres em idade fértil que desejam engravidar nos próximos 12 meses, pessoas com doenças graves ou não controladas e antecedentes de anafilaxia (reação alérgica grave).
Ela também não poderá ser aplicada em pessoas que receberam outras vacinas contra a covid-19, pessoas com HIV, hepatite B ou C, indivíduos que tenham se vacinado no mês anterior ou que tenham recebido tratamentos com imunoglobulinas e hemoderivados três meses antes da vacinação, e quem recebeu imunossupressores, citotóxicos, quimioterapia e radioterapia nos últimos 36 meses.
Os resultados de segurança e eficácia em fase três da Sputnik V foram publicados em revista de prestígio, mas a imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e integrante do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), estranha a aprovação parcial por parte da Anvisa.
— Quem decide se a fabricação está nos padrões aceitáveis do Brasil é a Anvisa. E isso a Anvisa ainda não fez. Ela parece ter sofrido pressão forte para aprovar — diz Cristina.
Questionado por GZH, o Ministério da Saúde afirmou por meio de nota que está em contato com governadores e com os laboratórios fabricantes das vacinas Covaxin e Sputnik. O governo ressalta que “as vacinas são seguras e eficazes, no entanto, esses imunizantes serão usados de forma mais restrita e monitorados, seguindo as recomendações da Anvisa”.
O Ministério da Saúde também se colocou à disposição dos Estados para elaborar estudos de efetividade e acompanhar as pessoas que receberem esses imunizantes. “Em breve, a pasta fará uma reunião com os gestores estaduais para discutir os próximos passos para aplicação da Sputnik. Quanto à Covaxin, a pasta está em contato com o laboratório para agilizar a importação e o cronograma de recebimento das doses”, diz o texto.
A Secretaria da Saúde (SES) do Rio Grande do Sul não respondeu aos questionamentos de GZH sobre o impacto da aprovação da Sputnik V e da Covaxin para a vacinação no Estado e se o governo gaúcho aproveitará a liberação para o consórcio de governadores do Nordeste para solicitar, também, a importação da Sputnik V.
Ficha técnica da Sputnik V
- Número de doses: 2
- Intervalo entre as doses: 21 dias
- Taxa de eficácia: 91,7%, segundo estudo da Lancet, e 97,6%, segundo Instituto Gamaleya
- Laboratório produtor: Instituto Gamaleya (Rússia) e Laboratório União Química (Brasil)
- Tipo de tecnologia: vetor viral
- Países em que foi aprovada: mais de 67 nações, incluindo Rússia, Argentina, Hungria, Venezuela, Egito, Jordânia, Belarus e Iraque
- Quantas doses o Brasil contratou: 10 milhões
- Temperatura de armazenamento: -18ºC
- Estágio de aprovação: lotes específicos liberados, em análise para uso emergencial
- Público-alvo: adultos saudáveis