Vivendo um período de flexibilização das regras de distanciamento, o Rio Grande do Sul tinha 15,7% da população residente vacinada contra a covid-19 com a segunda dose do imunizante até sexta-feira (25). A porcentagem ainda é distante do patamar de 70% de vacinados com a dose dois, defendido por especialistas como uma marca para a vida voltar ao ritmo anterior à pandemia de coronavírus. Isso, porém, não tem evitado uma circulação maior de pessoas nas ruas e parques, gerando uma falsa sensação de normalidade.
Os números não mentem. Até as 17h de sexta-feira, enquanto a lotação nas unidades de terapia intensiva (UTIs) de Porto Alegre seguia em quase 84%, a quantidade de veículos em circulação (5.361) na Capital estava próxima à de 11 de março do ano passado (6.120), quando a covid-19 foi declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), conforme o painel Mobilidade e Distanciamento da prefeitura.
Para o coordenador da Rede Corona-Ômica BR-MCTI, Fernando Spilki, também professor do mestrado em Virologia da Universidade Feevale, ainda não é possível liberar geral a circulação de pessoas.
— Neste ano, o vírus circula, em termos de número de casos, em uma magnitude muito mais alta do que aquela que circulava no ano passado. Muito pelo contrário do que pensam, deveríamos agora tomar mais cuidados. A vacinação ainda está num contingente muito aquém daquilo que nós precisamos para, efetivamente, termos uma imunidade coletiva, evitando que indivíduos que não tenham completado o seu calendário vacinal estejam adequadamente protegidos, a partir daqueles que já foram vacinados. É totalmente fora de questão estarmos vivendo num ambiente onde as atividades estão muito flexibilizadas naturalmente — justifica.
Quem precisa sair de casa diariamente para trabalhar tem percebido o movimento aumentando dia a dia. E também as dores de cabeça com quem, mesmo depois de um ano e meio de pandemia, segue negando o cumprimento das medidas sanitárias básicas de combate à covid-19.
Motorista de aplicativo há quatro anos e meio, Carina Trindade, 42 anos, tem cancelado até quatro de cada 10 viagens por problemas com passageiros que não aceitam cumprir as regras de proteção contra a covid-19. Ela relata que há quem se negue a usar máscara dentro do veículo, seja porque não acredita na doença ou porque acha que vacinado está livre dela (o que é errado), quem exija fechar os vidros do veículo (o certo é mantê-los abertos) e até quem queira sentar no banco ao lado da motorista (como medida de segurança contra o coronavírus, os veículos recebem apenas três passageiros no banco traseiro).
— Os problemas aumentaram depois da maior flexibilização no comércio, bares e restaurantes. Tem quem queira discutir, mas não abro mão dos cuidados principais. Se não aceitar as regras, cancelo a corrida na hora — conta.
Antes do embarque de um novo passageiro no carro temático repleto de bichos de pelúcia, Carina passa álcool 70% nos bancos e nas maçanetas. Também oferece álcool gel aos clientes e até máscara descartável para quem tentar entrar no veículo sem ela. Para evitar que alguém queira sentar no banco ao lado do motorista, ela passou a carregar um companheiro que chama a atenção nas ruas: um urso de pelúcia usando máscara.
— Ainda estamos no meio de uma pandemia, e as pessoas precisam respeitar a situação para que tudo se resolva o mais rápido possível — diz Carina.
Os pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) alertam que, com a entrada do inverno, há possibilidade de agravamento da pandemia no país nas próximas semanas. A análise do órgão mostra também que a tendência do rejuvenescimento da pandemia se mantém. A Semana Epidemiológica 22 (SE 22) apresentou idade média dos casos internados de 52,5 anos, versus idade média de 62,3 anos na semana anterior.
"Possivelmente o cenário atual de rejuvenescimento prosseguirá e poderá perpetuar um cenário obscuro de óbitos altos até que este grupo etário esteja devidamente coberto pela vacina. O padrão de transmissão do Sars-CoV-2 no país ainda é extremamente crítico", afirmam os pesquisadores da Fiocruz.
Só as vacinas, dado que temos muitas pessoas expostas, não serão suficientes para controlar a pandemia
ALEXANDRE VARGAS SCHWARZBOLD
Presidente da Sociedade Riograndense de Infectologia
Presidente da Sociedade Riograndense de Infectologia, Alexandre Vargas Schwarzbold ressalta que a demora para vacinar a maior parte da população pode criar uma capacidade de transmissão ainda maior de novas variantes do vírus.
— Está documentado na literatura. E estas variantes, como a indiana (Delta), com a capacidade maior de transmissão do que as anteriores, faz com que a taxa de transmissão comunitária continue muito alta. E isso reflete em hospitalizações e mortalidade em nível alto. O Rio Grande do Sul persistiu nos últimos meses sempre entre os oito Estados com a maior taxa de mortalidade, exatamente porque continuou com taxas muito altas de transmissão comunitária — explica.
Segundo Schwarzbold, para as pessoas que precisam conviver em locais público, o fundamental é evitar os horários de maior aglomeração e usar as máscaras adequadas, com fixação na região nasal e bucal e com filtração adequada (de preferência, PFF2/N95).
— Ainda precisamos manter os cuidados gerais, fundamentais e preventivos, como evitar aglomerações e convívio em lugares fechados com pessoas estranhas, usar máscara e álcool gel de modo sistemático, porque só essas ações, associadas à imunização, poderão controlar a taxa de transmissão. Só as vacinas, dado que temos muitas pessoas expostas, não serão suficientes para controlar a pandemia — argumenta o especialista.
"Não dá para relaxar"
A psicóloga e diretora do Instituto Proteger Samantha Dubugras Sá, também professora na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Fundação Universitária Mário Martins, reconhece que a população está numa fase de exaustão emocional, depois de meses cumprindo regras de distanciamento social.
Ela identifica entre os que não aceitam cumprir as medidas pelo menos dois mecanismos de defesa do aparelho psíquico como forma de enfrentarem a situação: o negacionismo e a racionalização.
A pessoa pensa "estou vacinado, agora não preciso mais me preocupar". Essa explicação racional é também para não enfrentar a ansiedade e o medo de dizer que está vacinado e que, mesmo assim, ainda pode pegar a doença porque não está 100% imune
SAMANTHA DUBUGRAS SÁ
Psicóloga, diretora do Instituto Proteger e professora na PUCRS e na Fundação Universitária Mário Martins
Segundo a psicóloga, o negacionismo se dá de maneira inconsciente e diz respeito à atitude do ser humano diante de uma realidade muito mais dolorosa e complexa do que ele pode aguentar. A pessoa prefere negar, como se a situação não existisse, e simplesmente seguir a vida. Com o negacionismo, vem o individualismo, quando a pessoa vê apenas a si própria, sem pensar no risco do outro.
Já a racionalização, de acordo com Samantha, ocorre especialmente neste momento entre os idosos, que passam a se permitir mais e dar menos importância às regras sociais.
— A pessoa pensa "estou vacinado, agora não preciso mais me preocupar". Essa explicação racional é também para não enfrentar a ansiedade e o medo de dizer que está vacinado e que, mesmo assim, ainda pode pegar a doença porque não está 100% imune — explica.
Por contra de todo o estresse ao longo deste período de pandemia, Samantha destaca um possível adoecimento psíquico de quem não acredita na gravidade da doença. Ela recomenda uma conversa sincera e aberta com a pessoa e sugere, inclusive, auxílio de um profissional da área da saúde mental.
— Não dá para relaxar. Se seguirmos no ritmo em que estamos, de não nos protegermos e de não protegermos ao outro, não acabará nunca. Na hora de alertar quem ainda nega a doença, é preciso pegar pelo afeto: "Você não está bem porque está com uma conduta que pode te destruir e destruir a quem tu amas" — ensina.