Saúde

Combate à pandemia

Imunidade de rebanho por infecção não encontra respaldo entre cientistas; entenda

Se a estratégia fosse mantida, quase 1,5 milhão de brasileiros morreriam de coronavírus

Marcel Hartmann

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Correção: o número de mortos por coronavírus no Rio Grande do Sul caso fosse aguardada a imunidade de rebanho por infecção seria de 78.840 vítimas, e não 394.221 como publicado entre 19h58min de 17 de maio e 18h27min de 24 de maio. O texto já foi corrigido.

No início da pandemia, com um coronavírus ainda desconhecido, a tese de imunidade de rebanho causada por infecções, atingida sem vacinas e sem restrições à mobilidade, chegou a ser cogitada por autoridades brasileiras e um grupo minoritário de cientistas em alguns países, como no Reino Unido e nos Estados Unidos

Mas hoje, com mais de 435 mil brasileiros mortos pela covid-19 até esta segunda-feira (17), a expectativa de chegar a 70% da população com uma imunidade natural gerada por infecção é rechaçada pela comunidade científica, que vê a estratégia como antiética, devido ao grande saldo de vítimas que pode gerar. 

— Não faz nenhum sentido, com o conhecimento sobre o vírus e o risco de mortalidade dessa doença em alguns grupos, defender a imunidade por infecção. Em março do ano passado, alguns países consideravam isso, como Reino Unido. Mas, hoje, se entende que é um crime defender imunidade de rebanho por infecção da doença. Se a gente normaliza isso, vamos normalizar mais mortes, mais demanda hospitalar. Nenhum país sério considera essa teoria, hoje. Essa doença não é uma gripe comum — diz Fábio Lopes, gerente de Atenção à Saúde do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). 

O que é a imunidade de rebanho?

A perspectiva da imunidade de rebanho – ou, como alguns analistas preferem, imunidade coletiva – prevê conter o vírus quando grande parte da população estiver protegida. 

Se você mora em uma casa com quatro pessoas e duas delas trabalham na rua, mas já estão imunizadas contra a covid-19, é mais difícil que os outros dois moradores sejam infectados. Agora, projete esse cenário para a sua rua, bairro ou cidade: quanto mais pessoas imunes, mais você está protegido por um “cordão natural”.

Biologicamente, os anticorpos podem ser adquiridos pela infecção natural ou pela vacinação, mas a ideia de imunidade de rebanho surgiu para se referir à proteção gerada por vacinas, e não pela doença em si, sublinha a imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).

— O termo foi mal apropriado, ele vem da vacinologia e é usado para falar dos efeitos das vacinas na população. Enquanto não existiu vacina para a varíola, o vírus matou a cada ano milhões de pessoas — diz a imunologista.

Nos Estados Unidos, um dos conselheiros do ex-presidente Donald Trump, Scott Atlas, defendeu a imunidade de rebanho – além de dizer que máscaras são ineficazes. O Reino Unido deixou o vírus circular com esse objetivo – mas, ao longo dos meses, o primeiro-ministro Boris Johnson, que foi internado por covid-19, abandonou a ideia em meio a um cenário de sistema de saúde colapsado e ao alto número de mortes. 

Quanto é preciso para chegar à imunidade de rebanho?

A porcentagem de no mínimo 70% foi estimada com base na taxa de transmissão da covid-19. Quanto mais transmissível é um vírus, mais alta precisa ser a porcentagem – o sarampo, bem mais contagioso do que o coronavírus, exige 95% da população vacinada. 

No Brasil, em tese, esse cenário será atingido quando 69,3% dos brasileiros estiverem vacinados – ou seja, 145,6 milhões de pessoas, segundo estudo publicado no ano passado no Journal of Infection, da British Infection Association. Para o Rio Grande do Sul, seriam mais de 7,8 milhões de pessoas. Mas a estimativa muda conforme a vacina usada, destaca a imunologista Cristina Bonorino.

— Baseada nos dados atuais, qualquer vacina com eficácia acima de 85% vai permitir chegar à imunidade coletiva mais rápido. Não ter comprado várias vacinas no ano passado vai afetar o país nisso também — diz Cristina, colunista de GZH. 

Por que a imunidade de rebanho por infecção não é uma opção?

A expectativa de atingir a imunidade de rebanho por infecção é rechaçada pela grande maioria dos cientistas em função do alto custo de vidas: se é preciso que 70% da população seja infectada, a consequência seria quase 1,5 milhão de mortos no Brasil e 78.840 vítimas no Rio Grande do Sul. Para efeitos de comparação, estima-se que, em três séculos de escravidão, 660 mil negros escravizados morreram em viagens de navio. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que chegar aos 70% pelo avanço da covid-19 é “inviável”. Em agosto do ano passado, Mike Ryan, diretor de operações da entidade, afirmou que é preciso “focar em suprimir a transmissão e não esperar que a imunidade de rebanho seja nossa salvação”. 

— Nunca fez sentido apostar em imunidade de rebanho (por infecção). Estamos muito longe, em qualquer lugar, de que pessoas já contaminadas possam ajudar a comunidade. Com mais de um ano de vírus e esse total de mortes que temos hoje, alguém tem coragem de defender imunização por pessoas infectadas? A imunidade de rebanho esperada é pela vacinação — diz a médica epidemiologista Jeruza Neyeloff, assessora da diretoria médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).

O segundo fator para se descartar a imunidade por infecções é que a alta circulação de vírus deu margem para o surgimento de novas variantes, que escapam de nosso sistema imunológico e conseguem adoecer uma pessoa que já teve a covid-19 antes. É o caso da variante P.1, originária de Manaus. 

O médico infectologista Ronaldo Hallal, consultor do Comitê Covid-19 da Sociedade Sul-Riograndense de Infectologia (SRGI), destaca estudo da Universidade de São Paulo (USP) com amostras de banco de sangue indicando que entre 75% e 80% da população da capital amazonense havia tido coronavírus no ano passado, o que não impediu o colapso da saúde da região em janeiro. 

— Há evidência clara de que falar em imunidade coletiva por exposição à doença não é possível, especialmente pelo aparecimento de variantes e porque essa imunidade natural não é duradoura. Essa teoria é um fracasso do ponto de vista epidemiológico e, do ponto de vista ético, repreensível. É uma política de morte, as pessoas precisam ser protegidas, não expostas. Sem falar que há um alto impacto econômico, uma diária em UTI pode chegar a R$ 40 mil — afirma Hallal. 

E o terceiro fator é que não se sabe, ainda, o tempo de duração da imunidade causada pelo vírus – mas se sabe que a imunidade gerada pela vacina é mais forte e de melhor qualidade do que a causada pelo vírus. Especificamente, vacinas desenvolvem anticorpos neutralizantes, que bloqueiam a entrada do vírus nas células. 

— Quando a gente mede a resposta imune do indivíduo vacinado comparada com quem teve a doença, a resposta da vacina é muito mais uniforme. São três benefícios da vacina: maior quantidade de anticorpos, melhor qualidade de anticorpos e queda no número casos — diz a imunologista Cristina Bonorino.

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