A seringa que contém uma dose de vacina contra a covid-19 carrega bem mais do que o líquido de ajudar o organismo a proteger-se contra o coronavírus. O instrumento carrega consigo esperança de dias melhores.
— Não é uma luz, é um holofote no final do túnel — descreve a técnica de enfermagem Kelly Kowalczyk, 45 anos, que trabalha no setor de imunizações da Secretaria de Saúde de Sapucaia do Sul, na Região Metropolitana.
Ela é uma das 227 pessoas da equipe, formada por diferentes profissionais, responsável por aplicar as vacinas contra a covid-19 no município. Moradora de São Leopoldo, Kelly está na profissão há menos de um ano _ ou seja, iniciou sua trajetória na área da saúde já durante a pandemia. Quando mais jovem, ela até havia iniciado o curso. Diante de oportunidades como gestora de comércio, tomou outros rumos na vida. Porém, há cerca de quatro anos, grávida do seu filho caçula, Kelly precisou frequentar o hospital diariamente, em função de complicações na gestação. Neste período, a vontade zelar pela saúde de outras pessoas voltou com tudo.
— O carinho e o cuidado que recebi me chamaram muito a atenção. Eu entendi que queria fazer aquilo também: tratar outras pessoas como fui tratada naquela época. Me matriculei novamente no curso e voltei com essa vontade. Me formei em 2020, já com a pandemia em andamento — conta a técnica, que, além do pequeno, hoje com três anos, tem outros três filhos: um de 18 e gêmeos de oito anos.
A vacinação contra a covid-19, portanto, é a primeira da qual Kelly participa desde o início. Mesmo assim, ela sabe que essa campanha tem um gostinho diferente para todos os envolvidos.
— Geralmente, quando precisa se vacinar, a pessoa chega com um único objetivo e vai embora. Agora, não. É muito diferente. A pessoa não entra na sala simplesmente para levar uma picada. Ela chega com uma história. Quer abraçar os netos, quer almoçar de novo com os filhos... É lindo, inenarrável — diz, às lágrimas.
Felicidade
A enfermeira Luciane Godoi Brum, 55 anos, do setor de Imunologia da Secretaria de Saúde de Canoas, começou a trabalhar na área em 1996, como auxiliar de Enfermagem. Fez curso técnico e, há 12 anos, formou-se na faculdade de Enfermagem. Diferentemente de Kelly, já tem na bagagem algumas campanhas de vacinação _ este, aliás, é um assunto que Luciane ama estudar —, mas concorda com a colega: vacinar contra a covid-19 tem sido especial.
— O vírus chegou, matou muita gente, foi tudo muito rápido. Nunca uma vacina foi tão esperada por toda a população. A gente vê as pessoas recebendo com uma felicidade imensa, extremamente sensíveis, chorando. Mesmo que tenham aguardado horas em uma fila, estão felizes, agradecidas, querem mesmo é receber a imunização, não importa a fila, nada — diz ela, que complementa:
— Chegam com tanto carinho que parece que nós fizemos a vacina para eles. Mas nós somos, na verdade, os instrumentos.
Janaina Rodrigues Martins, 40 anos, técnica de Enfermagem da Unidade Básica de Saúde Tamandaré, em Esteio, costuma vacinar cerca de 90 pessoas em cada dia de trabalho. Em ações especiais, como drive-thrus, esse número pode dobrar. Para ela, cada dose aplicada representa um pouco mais de proteção contra o vírus, e quem é imunizado reconhece o trabalho:
— É como se a gente estivesse devolvendo a vida para eles (os pacientes), como se estivessem recebendo um troféu. Alguns chegam sem acreditar que viveram o suficiente para chegar na vacina. É um dia muito esperado, eles nos passam uma emoção muito grande.
Histórias marcantes
Mesmo que o contato seja rápido — poucos minutos transcorrem entre a chegada, a conferência dos dados e a aplicação da vacina —, cada paciente é marcante. Há aqueles que chegam emocionados. Os que levam cartazes para agradecer ao Sistema Único de Saúde (SUS _ responsável pela distribuição de vacinas no Brasil), aos cientistas, aos profissionais da saúde em geral. Pequenos presentes para os aplicadores também são comuns, principalmente nos dias que antecederam a Páscoa: um bolo, bombons, chocolates.
— Vamos terminar a campanha com alguns quilinhos a mais! — brinca Kelly, que estima já ter aplicado pelo menos 1,2 mil doses até agora.
Porém, algumas histórias se destacam, pelos mais variados motivos. Kelly dá exemplos:
— Já encontrei mãe e filho, ela com 93 anos, ele com 69. Eu e uma colega combinamos de aplicar a vacina ao mesmo tempo. Foi a coisa mais linda. Outro dia, durante a vacinação do pessoal da segurança, atendi uma policial civil que veio com um bebê no colo, que também usava a camisa da Polícia Civil. As famílias se unem nesse momento, estão todos felizes e aliviados.
Luciane conta que a vontade mais comum relatada pelos pacientes é a de poder voltar a ficar perto de familiares. Até por isso, um dos casos que mais marcou a profissional até aqui foi a de uma trabalhadora da saúde que havia perdido, em uma semana, a mãe, um tio e uma irmã para a covid-19. Para aquela pessoa, a reunião tão esperada não seria mais possível.
— Ela chegou dizendo: "Preciso desta vacina". É claro que tem inúmeras situações felizes. Mas essa me marcou. Fiquei feliz por ela, que estava sendo imunizada, e triste ao mesmo tempo. Escutar uma história, ler no jornal, é uma coisa. Mas deparar com alguém ali é diferente. É como se fosse a verdade exposta na tua frente — conta a enfermeira.
Trabalho intenso
Desde que as primeiras doses de vacina contra a covid-19 chegaram ao Estado, ainda em janeiro, o trabalho de quem aplica na população não para _ e a rotina muda semana a semana, conforme novos lotes são distribuídos. Para que o maior número de pessoas seja atendido no menor tempo possível — e sem gerar aglomerações —, as prefeituras criam diferentes estratégias de vacinação, de acordo com realidade local: em postos de saúde, em pontos de drive-thru, por agendamento, por ordem de chegada, fora do horário comercial, aos sábados...
— Tudo é novo nesta campanha de vacinação. Vamos testando, vendo o que dá certo e o que não dá. Cada realidade exige adaptação. Em Sapucaia, já fizemos aplicação com drive-thru, por exemplo. Agora, está sendo feito por agendamento. Chego no trabalho, pego minha agenda e sei quem vou vacinar naquele dia, e em qual unidade de saúde — exemplifica Kelly.
Segundo Janaina, o esforço é grande. Trabalhar horas a mais e fazer plantões extras aos finais de semana tem sido comum. Porém, é recompensador:
— Cada dia é um dia. Estamos fazendo um esforço, ficando mais tempo longe das nossas famílias, mas as pessoas reconhecem, ficam agradecidas. A emoção é muito grande, não tem como explicar. Me sinto muito feliz em viver esse momento.
O que nem todo mundo sabe é que o trabalho de quem aplica vacinas não se resume ao momento da imunização. Depois, é preciso colocar os dados de cada paciente em um sistema, para informar as autoridades sobre a quantidade de imunizados de cada grupo.
Gratidão dos pacientes
No dia em que posou para as fotos desta reportagem, Kelly, que trabalha em Sapucaia, atendeu idosos que foram receber a segunda dose da vacina e também trabalhadores de apoio em serviços de saúde. Entre eles, estava Ana Maria Prestes Vieira, 74 anos. Além de muito feliz por ter completado o ciclo de imunização, a dona de casa saiu do local satisfeita com o atendimento que recebeu.
— Foi agendado. Cheguei lá e recebi toda a orientação, fui muito bem atendida. Tenho muita gratidão por todos os profissionais da saúde, que estão na linha de frente para combater o vírus — conta.
Apesar de saber da necessidade de seguir com os cuidados para evitar a contaminação mesmo após a vacina, dona Ana aguarda ansiosamente pelo retorno de atividades de sua rotina antes da pandemia:
— Estou louca para ir na minha hidroginástica (risos)! E também para voltar ao Clube de Mães. Os encontros fazem muita falta. Há mais de um ano que fico só em casa. Continuei fazendo trabalho voluntário, mas tudo a distância, como a produção de máscaras para doação.
O atendimento exemplar também é destacado pela recepcionista e auxiliar de consultório dentário Márcia Webster, 48 anos.
— Foi perfeito. Desde o agendamento até o atendimento. Todos muito educados, solícitos, organizados. Assim que abriu a possibilidade para mim, marquei a vacina. O dentista mexe em um local que pode ser foco da doença. Como auxilio em procedimentos e faço esterilização de equipamentos, o risco é alto. Agora, fico mais tranquila — relata.