Seis vídeos obtidos pela reportagem do Estadão mostram pessoas sendo vacinadas na noite da última terça-feira (23) na garagem de uma empresa de transporte em Belo Horizonte. As imagens foram gravadas por vizinhos do local, que denunciaram um esquema clandestino de imunização contra a covid-19 pela Viação Saritur. O vaivém ocorreu após as 20h, quando já estava em vigor o toque de recolher determinado pela prefeitura. O Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal (PF) em Minas investigam o caso.
Na quarta-feira, a revista Piauí mostrou que políticos e empresários de Minas teriam tomado a primeira das duas doses da vacina da Pfizer contra a covid, e eles compraram o imunizante por iniciativa própria, driblando o SUS, o que é ilegal. A revista, porém, não mostrou as imagens da vacinação irregular.
A compra de vacinas pela iniciativa privada é permitida, mas a lei aprovada este ano prevê que haja doação para a rede pública enquanto não for concluída a imunização dos grupos prioritários – embora decisão da Justiça em Brasília tenha deixado a situação em suspenso.
A garagem mostrada nos vídeos fica no fim da Rua Cláudio Martins, número 100, no bairro Alto Caiçaras. As imagens mostram uma aglomeração de carros em volta da entrada. Uma mulher de jaleco branco vai até o porta-malas de um carro, retira a vacina, e aplica nos motoristas. Alguns descem do carro para receber a dose. Outros são vacinados dentro do veículo. Outra pessoa anota nomes em uma ficha, como se estivesse confirmando cada vacinação dada.
A Polícia Militar de Minas confirmou que esteve na terça-feira (23) no endereço da empresa, após denúncia anônima. Segundo a corporação, seguranças do local disseram que houve "pequena reunião dos diretores", mas todos já haviam ido embora. Conforme a PM, uma pessoa, então, "acenou e, em voz baixa," identificou-se como a denunciante. Ela relatou aos policiais que filmou a vacinação e viu cerca de 25 carros no local. A PM disse que acionou a Vigilância Sanitária e outros órgãos de fiscalização, mas que "nada foi constatado pelas equipes". A reportagem esteve no local na última quinta-feira (25) e um funcionário disse que ali funciona "uma das empresas da Saritur".
Segundo o MPF, caso tenha havido importação de vacinas antes da lei aprovada pelo Congresso para regulamentar as compras do insumo no exterior, os responsáveis podem ser enquadrados no crime de contrabando. Se o episódio ocorreu após a aprovação da lei – e for mantida a sua validade –, a denúncia pode ser por descaminho. Em nota, a Secretaria de Saúde de BH disse não ter recebido oficialmente o vídeo que a autora da denúncia à PM prometeu enviar e, por ora, "não existe amparo legal para qualquer ação adicional da secretaria".
Conforme a revista, a segunda dose estaria prevista para ser aplicada nas cerca de 50 pessoas daqui a 30 dias. O custo seria de R$ 600 por pessoa. O ex-senador Clésio Andrade, também ex-presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), foi um dos vacinados, segundo a Piauí.
— Fui convidado, foi gratuito para mim — disse ele à revista.
Contrapontos
O Estadão questionou Clésio Andrade, que negou participação no caso.
O Estadão fez diversos contatos com os donos da empresa Saritur, os irmãos Rômulo e Robson Lessa, apontados como articuladores na compra da vacina, mas não teve respostas.
A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre o assunto. A pasta declarou que as doses da Pfizer/BionTech contratadas pelo governo federal só começarão a chegar ao Brasil em abril.
Em nota, a Pfizer "nega qualquer venda ou distribuição de sua vacina contra a covid-19 no Brasil fora do âmbito do Programa Nacional de Imunização".
Já a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) avalia se houve crime sanitário e também encaminhou ofício para a PF apurar o caso.
A Piauí relata que a enfermeira no local ainda teria se atrasado, porque estaria vacinando em uma empresa controlada da ArcelorMittal. Em nota, a Arcellor declarou que "nunca comprou nenhuma vacina".
* Colaboraram Leonardo Augusto e Marlos Ápyus, especiais para o Estadão.