Graduado em Educação Física e com mestrado e doutorado em epidemiologia, Pedro Hallal, 40 anos, preparava-se para sua primeira aula pós-reitoria na manhã da última quarta-feira (17). Por quatro anos, ele esteve à frente da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no cargo de reitor da instituição. Antes de começar a lição de Promoção da Saúde na Escola, Hallal atendeu a reportagem, por telefone, para falar sobre um dos grandes desafios que encarou ao longo de 2020: coordenar o maior estudo epidemiológico sobre o coronavírus no Brasil, o Epicovid-19, que extrapolou as divisas do Rio Grande do Sul e se espraiou por 133 municípios de todas as regiões brasileiras.
A imagem de um iceberg e as informações vindas de China e Itália, que experienciaram os primeiros piores momentos da pandemia, foram a inspiração para o desenho do Epicovid-19, que começou a ser elaborado logo em março de 2020.
— Naquela época, tínhamos dados desses países e entendíamos, ao interpretá-los, que os casos que apareciam nas estatísticas eram uma fração pequena. Como um iceberg, que esconde uma porção grande embaixo d'água — explica Hallal.
A partir da observação e interpretação dos números de mortos e infectados nessas nações, o pesquisador passou a desenvolver a hipótese de que havia muito mais gente com o vírus em relação ao que revelavam as estatísticas oficiais. Seriam pessoas com sintomas leves que nem chegavam a procurar assistência médica e sequer eram testadas.
— Então, começou uma força-tarefa, que incluiu a liderança da UFPel, e outras 12 universidades gaúchas, o governo do Estado, que sempre foi um grande parceiro, e a iniciativa privada — conta.
Com a união de esforços, em menos de 20 dias depois o primeiro óbito por coronavírus no Rio Grande do Sul, as primeiras equipes já estavam nas ruas testando os gaúchos. Da primeira ida a campo, em abril do ano passado, até agora, foram nove etapas da pesquisa e mais de 40 mil pessoas entrevistadas e testadas em território gaúcho.
O levantamento mais recente, feito em fevereiro, reflete a atual situação da pandemia no Estado, que vive seus piores dias e o esgotamento dos serviços de saúde. Ainda não divulgada oficialmente, a nona fase do Epicovid-19 vai mostrar que 10% dos gaúchos já tiveram contato com o vírus.
— Esse número pode ser interpretado de duas maneiras. Da negativa, pensando que 1,1 milhão de gaúchos já entraram em contato com o vírus, ou da positiva: "Olha, em um ano, ele não infectou 70% ou 80% da população, infectou 10%" — aponta o docente.
Para termos de comparação, a oitava etapa, publicizada em 10 de setembro de 2020, revelou a desaceleração no ritmo de crescimento da prevalência de coronavírus no Rio Grande do Sul. Conforme o levantamento, a proporção de pessoas com anticorpos para a covid-19, na época, era de 1,38%.
Além da prevalência do vírus, o estudo vai além, e abre caminhos para outras discussões, como a da popularizada imunidade de rebanho, lembra o epidemiologista. Na prática, para se chegar a esse nível de proteção coletiva, é preciso que 70% da população entre em contato com o vírus. Porém, em um ano, esse percentual chegou a 10%.
— Quanto tempo teremos que deixá-lo circulando para atingir a imunidade de rebanho? Venho destacando bastante esse resultado porque ele é a comprovação que as teorias negacionistas sobre essa proteção não se aplicam — afirma.
Pouco depois de iniciar a testagem em solo gaúcho, o Epicovid-19 se estendeu para o restante do Brasil. Em maio do ano passado, foi realizada a primeira coleta nacional, quando o levantamento contava com o apoio do Ministério da Saúde, ainda sob a batuta de Luiz Henrique Mandetta. Até agora, já foram realizadas cinco fases – a última ainda não divulgada – e milhares de brasileiros, de 133 municípios, de todas as regiões, entrevistados e com amostras coletadas:
— O Epicovid-19 é único em alguns aspectos. No tamanho da equipe, por exemplo, isso é um dos aspectos que mais gosto. O estudo nacional tem 2,3 mil pessoas colhendo dados, é uma coisa maluca, é muita gente. Outra coisa inédita na minha carreira é a agilidade com que ele teve que ser desenhado e também a velocidade da divulgação dos resultados. Normalmente, um artigo leva meses até ser publicado. No Epicovid-19, divulgamos os resultados de três a quatro dias depois do término de cada fase.
Ao longo do percurso, Hallal e sua equipe enfrentaram inúmeros desafios. Um deles foi o desinteresse do Ministério da Saúde em manter o projeto. Depois de financiar três fases, a pasta cortou o custeio da pesquisa nacional. Além da questão financeira, ainda foi preciso encarar a polarização do país e todas as consequências da confusão entre política e ciência que vem sendo criada nos últimos tempos.
— É difícil ser pesquisador neste momento no Brasil. Nossas opiniões científicas são confundidas com posições políticas — desabafa.
Ainda que com diversos obstáculos, o Epicovid-19 mostrou, diz Hallal, que o investimento em ciência sempre traz bons resultados e que, quando se trata de saúde pública, ela pode contribuir para salvar vidas. Como epidemiologista, o professor da UFPel vê dois possíveis cenários pela frente. Se o Brasil e o Rio Grande do Sul adotarem medidas restritivas duras e acelerarem a vacinação, o fim de 2021 pode ser bom, acredita. Por outro lado, se a reabertura de todos os setores se mantiver e a imunização não for célere, estaremos em risco:
— Já temos que março deste ano vai ficar marcado na história do RS como a maior tragédia do Estado.