O governo Jair Bolsonaro contrariou órgãos técnicos e excluiu trecho da Medida Provisória 1.026/2021, publicada em 6 de janeiro, que poderia ter facilitado a compra da vacina da Pfizer para a covid-19.
Na primeira versão da MP, obtida pelo Estadão via Lei de Acesso à Informação, havia um artigo que autorizava a União a assumir a responsabilidade sobre efeitos adversos que os imunizantes pudessem apresentar. Além disso, o texto liberava a contratação de um seguro para cobrir os riscos que o governo assumiria. Essas medidas são exigências do laboratório Pfizer para vender seu imunizante.
Países da Europa e os Estados Unidos já firmaram compromissos nesses termos com a farmacêutica para viabilizar a compra do imunizante. Trata-se de exigência do laboratório para evitar ser alvo de eventuais ações judiciais, mas o governo considerou a cláusula "abusiva".
A negociação com a farmacêutica americana, que ofereceu 70 milhões de doses ao país, se arrasta desde dezembro. O Brasil hoje depende da vacina CoronaVac, fabricada pelo Instituto Butantan, e do imunizante da AstraZeneca/Oxford, produzido pela Fiocruz, e não tem doses suficientes para vacinar toda a população. A previsão do Ministério da Saúde é de que serão necessárias 350 milhões de doses no total.
A versão descartada da MP da vacina foi enviada ao Palácio do Planalto no fim de dezembro pelos ministros da Saúde, da Justiça, da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Advocacia-Geral da União (AGU). Todos esses órgãos técnicos, portanto, entenderam que o artigo era aceitável.
O texto foi devolvido e, quando voltou na sua nova versão, apenas seis dias depois, o artigo que facilitaria a negociação com a Pfizer havia sido suprimido. Esse segundo texto, diferentemente do primeiro, incluía ainda a assinatura do ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto.
A nova redação da medida também excluiu a permissão para a União contratar um seguro privado, mesmo de empresa estrangeira, ou a criar outras garantias, como um fundo público, para cobrir os riscos que o governo assumiria. Esse tipo de reserva de segurança é utilizado, por exemplo, nos Estados Unidos, e serve para indenizar pessoas que eventualmente sofram efeitos colaterais após tomarem vacinas.
Apesar de ainda não ter vacinas garantidas para toda a população, Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, resistem em aceitar a proposta da Pfizer. Em nota de 23 de janeiro, a pasta disse que comprar esta vacina seria uma conquista de "marketing, branding e growth" para o laboratório, mas causaria "frustração em todos os brasileiros", porque a oferta de doses seria pequena. Das 70 milhões de doses que o laboratório negocia com o Brasil, só 8,5 milhões seriam entregues no primeiro semestre deste ano.
Bolsonaro e Pazuello apontam justamente a exigência da Pfizer de não responder por efeitos adversos como maior barreira para a negociação.
— Lá no contrato da Pfizer está bem claro: "Não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema de você" — disse o presidente, em discurso em Porto Seguro no dia 17 de dezembro.
No caso das duas vacinas que já estão sendo utilizadas no país, não há essa exigência. Caberá às fabricantes brasileiras dos imunizantes, Fiocruz e Butantan, responder por qualquer efeito adverso que não estava previsto.
Aval da AGU
Em parecer em que dá aval jurídico à medida, a AGU aponta a questão da responsabilidade da União em relação à vacina como de "induvidosa constitucionalidade". "Este dispositivo, além de estar adequado à realidade dos fatos, vez que não há ainda vacinas cuja maturidade de pesquisas seja suficiente para seguimento do processo regular de aprovação, é de induvidosa constitucionalidade."
Para a CGU, na prática, o governo já se expõe ao risco de ser responsabilizado por efeitos adversos, pois as vacinas são aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em 20 de janeiro, após a publicação da MP, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, declarou que a Pfizer considerava a legislação brasileira não "adequada" para fechar contrato.
— Estamos tentando verificar até onde eles podem ceder — afirmou Franco.
Especialistas ouvidos pela reportagem apontam que eximir a fabricante de responsabilização civil em caso de efeitos adversos causados por vacinas é prática comum em países desenvolvidos, inclusive para outros imunizantes, e algo recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
— Não é um contrato dracroniano. É o mesmo contrato que está sendo exercido no mundo inteiro e outros países estão aceitando — diz o advogado Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência.
Ele também afirma que a criação de fundos públicos para assegurar ressarcimento por efeitos adversos é "prática consolidada no mundo". Segundo Almeida, porém, o uso deste recurso é uma rara exceção, pois as vacinas passam por "sério crivo das agências reguladoras", o que já confirmaria a segurança dos produtos.
— Acaba sendo uma birra do governo. Talvez por desconhecimento das melhores práticas internacionais. Na pior leitura possível, é criar entraves para dificultar a entrada das vacinas, por desinteresse em se associar à empresa, seja por motivo ideológico ou mercadológico — afirmou Almeida.
A epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunização (PNI) entre 2011 e 2019, disse ao Estadão, no fim de janeiro, que é difícil fazer uma avaliação mais precisa das condições negociadas para a venda de vacinas da Pfizer, pois em nenhum momento o contrato foi divulgado em sua íntegra para verificar se há mesmo "cláusulas leoninas e abusivas", como disse o ministério.
No entanto, ela questiona o fato de o Brasil ser o único país a ter dificuldade de assinar com a farmacêutica americana, enquanto Estados Unidos, países da Europa e outras nações já fecharam negócio.
— A dificuldade é porque o Brasil não se planejou para essa vacina, de enorme complexidade — afirmou.
Procurados para comentar a mudança na MP, o Ministério da Saúde e o Palácio do Planalto não se manifestaram. No Congresso, que tem até maio para analisar a medida provisória, há discussões sobre incluir no texto o artigo que facilitaria o negócio com a Pfizer.
Em janeiro, a Pfizer disse em nota que outros países aceitaram as mesmas condições exigidas ao Brasil. "Países como Estados Unidos, Japão, Israel, Canadá, Reino Unido, Austrália, México, Equador, Chile, Costa Rica, Colômbia e Panamá, assim como a União Europeia e outros países, garantiram um quantitativo de doses para dar início à imunização de suas populações, por meio de acordo que engloba as mesmas cláusulas apresentadas ao Brasil." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.