Quem está à espera da vacina capaz de frear a mortal pandemia de coronavírus oscilou entre um eufórico otimismo e a descrença, rapidamente, ao longo desta semana.
Candidato dos mais competitivos quando se considera preço e distribuição, o imunizante em estudo pela farmacêutica AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido, esbarrou em erros de planejamento, condução, verificação, compilação de dados e divulgação. A credibilidade dos envolvidos se tornou contestável, em questão de horas, sob o peso de fortes críticas da comunidade científica.
A vacina, que vem sendo testada também no Brasil — inclusive no Rio Grande do Sul —, é a única para a qual o governo federal tem contrato de aquisição e distribuição fechado.
Para tirar dúvidas sobre o imbróglio, GZH entrevistou dois especialistas no assunto. Confira, a seguir, os comentários da imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e membro do Comitê Científico da Sociedade Brasileira de Imunologia, e do microbiologista Luiz Gustavo de Almeida, coordenador de projetos pedagógicos do Instituto Questão de Ciência, de São Paulo.
Qual foi a primeira manifestação da AstraZeneca sobre os resultados do estudo da vacina desenvolvida em parceria com a Universidade de Oxford?
Na última segunda-feira (23), um pronunciamento da farmacêutica empolgou audiências pelo mundo: a vacina desenvolvida em parceria com a instituição britânica teria demonstrado eficácia de 90%. O percentual baixava para 62%, entretanto, quando se olhava para outro grupo de voluntários. A eficácia mediana seria de 70%.
O que aconteceu?
O grupo com melhor resposta ao imunizante havia recebido meia dose inicial e, depois de um mês, uma dose inteira, enquanto outra parcela de participantes ganhou duas doses completas — sem contar o grupo do placebo, que configura um terceiro segmento. A empresa esclareceu depois que o esquema de meia dose derivou de um erro de fabricação, que teria sido identificado por um pesquisador envolvido no estudo.
A imunologista Cristina Bonorino destaca que doses diferentes não estavam previstas no estudo clínico original e que os protocolos não devem ser modificados depois da largada.
Dados que não poderiam ser agrupados acabaram sendo, o que é errado. Para complicar e confundir ainda mais, resultados de ensaios concebidos no Brasil e no Reino Unido deveriam ter sido informados separadamente.
— Eles fizeram uma enrolação, dizendo "com esse grupo tem 62% de eficácia e com esse outro tem 90%". A boa prática de ciência é: se você erra em um grupo, retira esses dados do estudo — afirma Cristina.
O microbiologista Luiz Gustavo de Almeida lamenta o ocorrido.
— Essa bagunça toda está prejudicando uma vacina boa, mais barata, de logística mais fácil — analisa Almeida. — É o que chamamos de "ficar torturando o resultado", até dar o que a gente quer. Eles mostraram um recorte, uma parte muito pequena do todo — acrescenta.
O que se sabe até agora?
O grupo que demonstrou 90% de eficácia após a aplicação da vacina é muito pequeno. As doses erradas foram administradas a pessoas com idade inferior a 55 anos.
Por que há diferença tão grande entre os percentuais de eficácia?
De acordo com reportagem do jornal The New York Times, representantes da AstraZeneca e da Universidade de Oxford alegaram não saber explicar.
O que deveria ter sido feito?
Cristina explana que, quando ocorre um erro e se esse "acidente" promete resultados melhores, desenha-se outro estudo para que se execute todo o processo novamente. Por vezes, um estudo tem um subestudo dentro. Exemplo: tem início uma pesquisa com adultos e, em determinado momento, começa um subestudo envolvendo idosos.
No caso da AstraZeneca, os resultados de cenários diferentes foram erroneamente misturados.
— Isso é má prática científica. Juntar laranjas e maçãs e dizer que é tudo igual, e não é — diz Cristina.
Quais as críticas da comunidade científica?
Farmacêuticas estão divulgando seus resultados à imprensa antes da publicação dos artigos ou, pelo menos, dos dados principais que foram obtidos em seus ensaios clínicos de vacinas. O comunicado da AstraZeneca, nesta semana, foi considerado especialmente precário.
— Não adianta ouvir só a empresa a falar. A AstraZeneca não mostrou os dados nem como esses ensaios estão sendo feitos — observa Almeida.
Como o laboratório se explicou?
Em entrevista concedida na quarta-feira (25), Menelas Pangalos, executivo da AstraZeneca encarregado dos setores de pesquisa e desenvolvimento, defendeu a forma como a companhia conduziu os testes e a divulgação.
O erro, segundo o dirigente, teria sido cometido por uma empresa terceirizada. Tão logo a falha foi descoberta, segundo Pangalos, instâncias reguladoras foram notificadas e se obteve autorização para a continuidade da aplicação das doses.
Pangalos minimizou o acontecido, classificando-o como um "acaso feliz", capaz de demonstrar aos cientistas um caminho mais promissor.
Quer dizer que esta vacina não funciona? Será descartada?
Neste momento, é impossível saber, devido à confusão que se formou. Estudiosos não sabem no que acreditar enquanto a totalidade das informações não vêm à tona. Para Almeida, a vacina só será descartada se não atingir o mínimo de 50% de eficácia exigido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
— Mas eles vão ter que evitar erros — adverte o microbiologista.
A credibilidade do estudo e do laboratório fica comprometida?
A imunologista Cristina Bonorino é incisiva na resposta:
— Totalmente. Agora podemos pensar: "Onde mais será que eles erraram?".
Para o microbiologista Luiz Gustavo de Almeida, a tendência é de que o público fique "com o pé atrás" diante da próxima manifestação da AstraZeneca. O episódio também gera desgaste com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, que produzirá o imunizante no Brasil.
— A imagem deles está muito abalada. Se não conseguirem contornar a situação, será uma perda não só pra AstraZeneca, como para a corrida pela vacina — antevê Almeida.
E a partir de agora?
Pesquisadores e órgãos reguladores querem ter acesso aos dados brutos. É fundamental saber com precisão quantas pessoas receberam cada esquema vacinal, com que efeitos etc.
Cientistas acham improvável que a vacina seja aprovada nos Estados Unidos, cliente que já encomendou 300 milhões de doses, e em outros países, tamanha a indignação da comunidade científica.