Relatório da ONG Transparência Brasil aponta suspeita de irregularidades em compras de medicamentos relacionados à pandemia de coronavírus em municípios do Rio Grande do Sul. Os pesquisadores da organização analisaram mais de 5 mil compras emergenciais realizadas por prefeituras gaúchas, que somam R$ 302 milhões. Somente em remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19, foram gastos R$ 1,3 milhão. O coronavírus já matou 6.573 pessoas no Estado.
Garruchos, na Região das Missões, concentra a maior compra, levando em conta o número de habitantes. Com pouco mais de 3 mil moradores, o município adquiriu 4,5 mil envelopes de ivermectina. Esse montante de medicamentos é 50% maior do que a população de Garruchos. O prefeito da cidade, João Carlos Scotto, afirma que usou a ivermectina como preventivo.
— Garruchos optou por fazer medicina preventiva quando todos deixaram a casa incendiar pra depois chamar os bombeiros. Pensamos que o sistema imunológico é aquilo que nós devemos proteger — destacou Scotto.
Infectologista e professor da Ulbra, Claudio Stadnik afirma que esse tipo de tratamento não tem eficácia comprovada para prevenir a covid-19:
— Não existe, até o momento, nenhuma comprovação científica do uso da azitromicina para o tratamento do covid. Portanto, nenhuma sociedade específica especializada no tratamento de covid recomenda o uso dessa medicação, muito menos o uso profilático, ou seja, antes de a pessoa ficar doente. Isso vale também para hidroxicloroquina, ivermectina, zinco e vitamina D, que muitos estão postulando o uso. Portanto, não há uma recomendação.
Juliana Sakai, diretora de operações do Transparência Brasil, afirma que é importante apurar se o uso dessa grande parcela de dinheiro público em produtos sem eficácia comprovada contra a covid-19 ocorre em razão de erro de cálculo, má gestão ou desvio de verba.
— É no mínimo estranho o que leva um gestor a usar grande parte do seu recurso em medicamentos que não têm eficácia comprovada, em primeiro lugar. Em segundo lugar, comprar mais medicamentos do que a quantidade da população: qual a estimativa que ele fez de propagação, e que precisaria ser administrado tamanho número de medicamentos? A gente precisa ver se isso foi um erro de cálculo, má gestão ou se existem esses medicamentos. Se estão ou não nos estoques, se foi uma compra que existiu de verdade — observa.
O relatório da organização também demonstra que compras realizadas por algumas prefeituras não detalham quais produtos foram adquiridos, o que impede a comparação de preços. Suspeitas de erros no preenchimento de planilhas ou até mesmo de superfaturamento também estão entre os apontamentos do estudo.
— A gente identificou algumas discrepâncias nas prestações de contas das compras que os municípios fizeram no combate à covid. Aí existem alguns problemas, algumas discrepâncias nos preços, e isso pode indicar duas coisas. De um lado, uma prestação de contas malfeita, onde se indica uma quantidade equivocada de itens comprados, então a gente não consegue averiguar quantos itens foram efetivamente adquiridos e por qual valor. Do outro lado, pode haver fraudes. Então, temos possivelmente um superfaturamento, de compras que foram feitas com preço muito acima, dentro de um processo facilitado, sem competitividade, para acelerar o combate à covid, para agilizar esse procedimento de compra. Precisamos ter agilidade para responder à pandemia. Só que a gente vê que em muitos casos tem algumas empresas que foram criadas após a pandemia e foram contratadas pelo poder público da mesma forma — salienta a diretora de operações do Transparência Brasil.
A ONG cita relatórios da prefeitura de São Jerônimo, na Região Carbonífera, que mostram o pagamento de R$ 22 por máscara, enquanto a média do preço de mercado é de R$ 3,49 — veja o que diz a prefeitura do município no final do texto.
A empresa que forneceu as máscaras tem sede em Santa Catarina e é a mesma citada por uma mulher que apareceu em reportagem do Fantástico. Em um flagrante feito com câmera escondida, ela se apresenta como representante da empresa e oferece propina em contratos para a compra de testes rápidos para a covid-19.
— Teste é o que mais vale a pena. Se botar 150, tu ganha R$ 50 por teste — disse a mulher, sem saber que estava sendo gravada. A identidade dela não será divulgada.
As negociações com a mulher que se apresenta como representante da empresa também envolvem a compra de ivermectina. Segundo a mulher, é possível conseguir 30% de propina sobre o valor da compra. Ela também ofereceu termômetros para medir a temperatura corporal, a um custo de R$ 170 a unidade. Desse valor, R$ 75 seriam propina ao comprador.
A vendedora também negocia equipamentos de proteção individual e cita a venda de 100 mil toucas para uma prefeitura, com pagamento de propina de R$ 0,05 por touca.
— Eu vendo 100 mil toucas para um lugar, deu R$ 0,18 centavos a touca, (…) dá para ganhar R$ 0,05 por touca.
A fraude envolveria três orçamentos necessários para essas compras emergenciais. Combinadas, duas firmas fariam cotações maiores que a da distribuidora catarinense, que, assim, venceria a disputa.
Procurada pela reportagem após as tratativas, a mulher negou pagamento de propinas envolvendo compra de equipamentos por parte de prefeituras.
— É muito triste ver que mesmo durante a pandemia você vai ter agentes, pessoas ou empresas que vão tentar tirar proveito de uma situação em que tem milhões de pessoas morrendo, em que o poder público tem que se unir para assegurar a saúde pública. Mas, mesmo assim, existe sempre gente querendo tirar proveito disso — afirma a diretora Juliana.
Contrapontos
GZH tentou contato com a empresa catarinense, mas não obteve sucesso.
A prefeitura de São Jerônimo, citada no texto, afirmou que "o município comprou máscaras tipo PFF2, que é item de segurança necessária aos profissionais da área da saúde", e não "máscaras comuns de TNT". "A compra se deu nas primeiras semanas da pandemia no Brasil, onde houve inesperada falta de produtos no mercado e consequente aumento de preços. O procedimento de aquisição respeitou todos os ditames legais e a empresa foi escolhida baseada nos quesitos melhor preço e disponibilidade imediata de entrega."
Segundo a prefeitura, outros municípios pagaram valores ainda mais altos na época.