- Porto Alegre registrou falsa queda na ocupação de UTIs e uma semana depois entrou em bandeira laranja
- Variação ocorreu após erro no informe de dados por parte do Hospital Conceição e da Santa Casa
- Prefeitura afirma que erro foi pontual e Estado diz que equívoco não afetou cálculo de bandeiras
A ocupação de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) por doentes de covid-19 em Porto Alegre se manteve, ao longo da última semana de agosto, acima do registrado em estatísticas oficiais do painel da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). A subnotificação ocorreu por erro de hospitais ao informar os dados dias antes de a Região Metropolitana ganhar bandeira laranja. O Piratini afirma que não houve efeito na análise do modelo de distanciamento controlado.
Entre 20 e 27 de agosto, a média diária de pacientes com coronavírus em UTIs da cidade ficou artificialmente em 311, abaixo da média da semana anterior (336,5) e posterior (336), como mostra o infográfico abaixo.
Na semana seguinte ao erro, a Região Metropolitana ganhou preliminarmente bandeira vermelha do governo do Estado, mas, após mudança de critérios de avaliação no Piratini, recebeu bandeira laranja em 31 de agosto.
O Piratini concordou em aplicar cenário mais brando sob a justificativa de que o Estado estabilizou a propagação da covid-19 e a ocupação de UTIs – o modelo de distanciamento controlado adota 11 indicadores, sendo o cenário das internações o mais importante.
O Comitê de Dados do Piratini afirmou, em nota, que o erro não influenciou a classificação (leia o texto completo abaixo). Já a prefeitura diz que o equívoco foi pontual e não altera o cenário de estabilização da epidemia na Capital.
A reportagem conversou com seis especialistas e buscou os sete hospitais de Porto Alegre com mais pacientes de coronavírus para apurar o assunto. O Hospital Conceição e a Santa Casa de Misericórdia confirmaram o erro estatístico.
A confusão decorre de uma diretriz de agosto do Center for Disease Control (CDC), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dos Estados Unidos. A regra permite que hospitais retirem de UTIs para coronavírus e aloquem em UTIs normais os pacientes graves internados há 20 dias que não apresentarem febre nas últimas 24 horas e que apresentarem melhora. Nesse cenário, o indivíduo não contamina mais ninguém.
O problema é que, ao contabilizar esses pacientes que seguiam em estado grave mas não contaminavam, o Hospital Conceição e a Santa Casa de Misericórdia se confundiram na hora de preencher uma tabela da prefeitura. Na prática, deixaram de contabilizar essas pessoas como pacientes ocupando UTIs por coronavírus.
— O CDC falou que, a partir de determinadas condições, o paciente não transmite mais. Não quer dizer que não esteja doente: o paciente que internou por covid continua sendo covid e necessitando de cuidado — diz Alexandre Zavascki, professor de Infectologia na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Temos a preocupação de as pessoas terem entendido que a situação estava melhor o que o real
JERUZA NEYELOFF
Médica epidemiologista do Hospital de Clínicas
Na prática, observam médicos, a realidade era que a cidade estava com as UTIs estabilizadas, mas em nível mais perigoso, com cerca de 20 leitos ocupados a mais do que o informado. Para entender a dimensão do erro: nesta terça (8), a Capital tinha 55 vagas livres em UTI.
O modelo de cogestão estabelecido pelo Estado permite que a cidade adote protocolos mais brandos, se houver plano definido e aprovado pelo Piratini. Entretanto, especialistas avaliam que o erro possa ter passado à população a ideia de que a pandemia estava menos grave e ter ajudado a cidade a ganhar bandeira laranja.
— No momento, a gente hipotetiza que a queda na ocupação de leitos da cidade pode ter decorrido parcialmente dessa variabilidade no preenchimento de dados, e que talvez a gente não esteja em subida, mas um grande platô em alta demanda. Temos a preocupação de as pessoas terem entendido que a situação estava melhor o que o real — afirma a médica epidemiologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Jeruza Neyeloff.
Para o médico infectologista Ronaldo Hallal, do Comitê Covid-19 da Sociedade Sul-Riograndense de Infectologia, o equívoco “ameniza a gravidade da epidemia”.
— A questão da ocupação interfere nas bandeiras e ameniza a gravidade da pandemia. Há um interesse de que as coisas voltem rapidamente. Quando as informações são adequadamente prestadas, já ficamos expostos à abertura de atividades. Se a informação não é confiável, tudo vai por água abaixo — afirma Hallal.
A pedido de GZH, o matemático Álvaro Krüger Ramos, professor de Matemática Aplicada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), projetou qual seria a classificação de Porto Alegre no sistema de bandeiras sem o erro de subnotificação. Resultado: a cidade seguiria em bandeira vermelha, e com notas piores.
Infelizmente, os critérios técnicos ficaram subjugados, e o próprio lema de usar dados para embasar decisões é deixado de lado
ÁLVARO KRÜGER RAMOS
Professor de Matemática Aplicada da UFRGS
— Na semana em que a região de Porto Alegre ficou com bandeira laranja, nossa média ponderada era 1,50. Se o número de pacientes em leitos de UTI estivesse sendo contabilizado corretamente, essa média teria sido aumentada para 1,61. Ambas as médias deixam Porto Alegre na bandeira vermelha. Infelizmente, os critérios técnicos ficaram subjugados, e o próprio lema de usar dados para embasar decisões é deixado de lado — afirma Ramos.
Quando notou os números discrepantes, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) orientou, em 27 de agosto, que todos os hospitais da cidade contabilizassem internações em UTIs por coronavírus mesmo após os pacientes darem negativo para o vírus – o motivo é que eles seguirão internados e exigindo atendimento intensivo.
O Grupo Hospitalar Conceição (GHC) informou que o erro técnico ocorreu entre 20 e 25 de agosto e que não alterou o panorama da cidade.
— Foi uma interpretação equivocada, mas não mudou em absolutamente nada no total porque a diferença era pequena, de 10 a 12 pacientes por dia. Se os pacientes, depois de testados, não tivessem mais presença viral, eram considerados para sair da UTI covid e ir para a UTI não covid. Nosso controle de infecção criou uma coluna na planilha que circula internamente com os covid positivos e outra coluna com quem tinha condições de ser liberado da UTI covid. O correto seria copiar as duas informações para o dashboard — afirma o diretor-técnico do GHC, Francisco Paz.
A Santa Casa de Misericórdia, informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que os dados da ocupação de suas UTIs foram divulgados erroneamente apenas em 27 de agosto – no dia em questão, entendeu-se que Porto Alegre registrara a menor ocupação desde julho.
O erro, apurou a reportagem, foi por informar os casos confirmados como suspeitos após os internados em UTIs realizarem teste e o resultado sair negativo. A Santa Casa diz que o equívoco foi corrigido no dia seguinte e que a metodologia adequada é usada desde então.
O que diz a prefeitura
O secretário da Saúde de Porto Alegre, Pablo Stürmer, afirma que o erro foi “extremamente pontual” e que o equívoco não altera a interpretação de que a epidemia está estável há 45 dias na Capital. Ele critica alegações de que os dados da prefeitura não têm credibilidade e afirma que a pasta acompanha detalhadamente os números para evitar que o problema ocorra novamente.
Dizer que temos uma crise de confiança (nos dados) é querer desinformar a população
PABLO STÜRMER
Secretário municipal da Saúde
— A gente monitora diariamente os dados e, sempre que tem uma variação anormal, contatamos as entidades. Não olhamos só para o dashboard, mas também para a solicitação de novos leitos, a evolução de casos confirmados, a demanda das tendas e a ocupação dos leitos de enfermaria. Se algo destoar, vamos atrás. Dizer que temos uma crise de confiança (nos dados) é querer desinformar a população — afirma o secretário.
O que diz o governo do Estado
Em nota, o governo do Estado afirma que o Comitê de Dados se baseia nas informações dos próprios hospitais para tomar decisões, mas que o erro do Conceição e da Santa Casa não impactou na classificação da Região Metropolitana. Leia a nota completa:
“Para fins de monitoramento dos indicadores previstos no modelo de Distanciamento Controlado, a equipe técnica do Comitê de Dados se vale de informações fornecidas pela Secretaria Estadual de Saúde a partir do que é lançado pela rede hospitalar do Rio Grande do Sul. Cabe observar que o eventual erro no lançamento das informações sobre internações em leitos de UTI por casos confirmados de Covid-19, por parte dos dois hospitais de Porto Alegre, não representou qualquer impacto na classificação final da região na referida semana.
No caso específico do Grupo Hospital Conceição, o equívoco teria ocorrido em um período anterior ao dia de fechamento dos indicadores (quando as informações já estavam corrigidas). Já em relação à Santa Casa de Misericórdia, o lançamento errado mostrou-se dentro de uma margem que não alteraria o resultado final da bandeira.
De qualquer maneira, ao monitorar 11 indicadores sobre o avanço da pandemia e a capacidade de atendimento, o modelo de Distanciamento Controlado, adotado desde o mês de maio pelo Rio Grande do Sul, funciona a partir de um conjunto de informações que precisa retratar, com a máxima correção, o panorama da pandemia entre os gaúchos.”