Modelo global em produção e aplicação de vacinas, com ampla distribuição gratuita para a população, o Brasil tem o desafio de manter o status lapidado ao longo de décadas diante de complicadores que surgem durante a espera por um imunizante seguro e eficaz contra a infecção pelo coronavírus.
Declarações recentes do presidente Jair Bolsonaro — “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina” —, ecoadas em redes sociais pela Secretaria Especial de Comunicação Social, despertaram polêmica e até a manifestação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que ressaltou a necessidade de educação, transparência e informação pública sobre a importância das doses.
Outro fator desanimador que compromete a reputação brasileira na área é que, pela primeira vez em quase 20 anos, o país não atingiu a meta de cobertura para nenhuma das principais vacinas indicadas para crianças de até um ano, de acordo com análise de dados de 2019 do Programa Nacional de Imunizações feita pelo jornal Folha de S.Paulo.
No contexto da pandemia, especialistas temem que a busca pelas doses também sofra queda significativa neste ano. Como resultado, há risco de retorno de doenças que já eram consideradas eliminadas, como ocorreu com o sarampo, ou aumento nos índices de transmissão de outras enfermidades que estavam sob controle.
Akira Homma, assessor científico sênior do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) responsável por pesquisa, desenvolvimento e produção de vacinas, afirma que a população precisa entender que a vacinação é fundamental para a saúde pública e o bem-estar geral. O sucesso do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que completa 47 anos neste mês, possibilitou dar fim a males como a poliomielite, a varíola e a rubéola. Esses méritos, para Homma, podem dar a sensação de que tudo está bem e resolvido.
— A população, a meu ver, sente-se protegida. Não vê mais doença, não vê mais epidemias, não vê mais surtos epidêmicos. Então, para que se vacinar? Apenas quando surge um pico de doença, como a febre amarela, a população, de repente, acorda e vai fazer fila nos postos — observa Homma, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), ex-presidente da Fiocruz e ex-diretor de Bio-Manguinhos.
A disseminação de notícias falsas é outro entrave para o cumprimento a contento do calendário vacinal. O desafio, segundo Homma, é modificar a forma de comunicação:
— Temos que pensar em uma estratégia alternativa para informar sobre os benefícios da vacinação. O mundo mudou, já não é mais o mesmo mundo de 20, 30 anos atrás, quando tínhamos surtos epidêmicos de paralisia infantil, por exemplo.
O foco sempre é a saúde pública, muito forte no país graças à Constituição de 1988, que criou o Sistema Único de Saúde. O Programa Nacional de Imunizações foi construído com essa base, pensando coletivamente"
MAYRA MOURA
Diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm)
Durante a pandemia, enquanto o mundo espera por resultados promissores entre as pesquisas que estão nas fases mais adiantadas com testes de imunizantes em voluntários, essa comunicação precisa se tornar mais efetiva.
— Líderes de todas as áreas têm que falar da importância das vacinas, não só os da área médica. Líderes comunitários, líderes de diferentes setores da sociedade. Temos que fornecer informações compreensíveis, transparentes. E isso não é obrigação só dos governantes — opina Homma.
A enfermeira Mayra Moura, mestre em Tecnologia de Imunobiológicos e diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), explica as bases do protagonismo nacional. O aspecto epidemiológico é fundamental: avaliar que doenças estão mais presentes, em que regiões circulam, quais os grupos mais afetados, quem mais precisa de hospitalização, quem vai ficar com sequelas e depender de assistência pelo resto da vida, que doenças levam à morte.
— O foco sempre é a saúde pública, muito forte no país graças à Constituição de 1988, que criou o Sistema Único de Saúde (SUS). O PNI foi construído com essa base, pensando coletivamente — destaca Mayra.
Outro ponto relevante é a avaliação que se faz das vacinas: qualidade, eficácia, segurança, faixa etária a que se destina e impacto na diminuição de sequelas, internações e óbitos. Sempre se procura valorizar a indústria brasileira.
— O PNI não define qual vacina vai ser implementada no calendário básico sem tentar, pelo menos, que os laboratórios nacionais sejam, em algum momento, responsáveis por essa vacina a longo prazo — explica Mayra.
Esse processo funciona da seguinte forma: diante da necessidade de determinado imunizante, avalia-se o que há disponível no Brasil. Se não tem vacina para a doença em questão aqui, realiza-se uma busca no mercado internacional. No momento da compra, procura-se articular também, para o futuro, a transferência de tecnologia, para que as doses possam passar a ser produzidas no Brasil a partir de algum momento — é fundamental que o laboratório tenha uma fábrica. São, portanto, três grandes fases, detalha Mayra:
— Começamos comprando o produto pronto e só fazendo a distribuição. Depois, compramos a matéria-prima, envasamos e distribuímos. Em terceiro lugar, passamos a produzir a matéria-prima e a vacina aqui. A transferência de tecnologia significa que aprenderemos a fazer aquela vacina exatamente como a original.
É um serviço preventivo importantíssimo. Evita a circulação de doenças que são preveníveis por vacinação e possibilita que as pessoas não adoeçam e não fiquem sequeladas
MAYRA MOURA
Diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm)
Como exemplo de vacinas que começaram sendo importadas e, mais adiante, passaram a ser produzidas no Brasil, Mayra cita a da influenza, a cargo do Instituto Butantan, a da poliomielite e a tríplice viral, sob responsabilidade da Fiocruz.
— Colocar uma vacina no calendário básico, responsabilizar-se por ela e tê-la disponível fortalece o PNI. A constância é muito importante, e o programa tem muito sucesso nisso, porque o desabastecimento prejudica e desestimula a população. Não costuma faltar vacina. De alguns poucos anos para cá, têm acontecido alguns desabastecimentos, mas logo o PNI compra a vacina e a recoloca nos postos. No geral, o PNI é muito sustentável — avalia Mayra.
A diretora da SBIm reforça outro ponto importante: o Brasil não apenas recomenda a vacinação como a oferece, gratuitamente. Ano a ano, novas vacinas são incluídas ou faixas etárias são ampliadas (atingindo um grupo maior de pessoas para receber as doses). Trata-se de um esquema completo, afirma Mayra, que depende da assiduidade dos indivíduos para se tornar, de fato, benéfico.
— É um serviço preventivo importantíssimo. Evita a circulação de doenças que são preveníveis por vacinação e possibilita que as pessoas não adoeçam e não fiquem sequeladas — define Mayra.
Vacinação no Brasil
- Com o Programa Nacional de Imunizações (PNI), o Ministério da Saúde distribui, anualmente, mais de 300 milhões de doses de imunobiológicos nos mais de 42 mil postos públicos de vacinação de rotina em todo o país.
- São aplicadas, em média, 110 milhões de doses de vacinas de rotina todos os anos – o número não inclui as demais doses aplicadas em campanhas sazonais, como a de influenza ou a de sarampo.
- O público-alvo do Calendário Nacional de Vacinação inclui crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e povos indígenas.
- Ao todo, são ofertadas 19 vacinas para mais de 20 doenças, cuja aplicação se dá ainda nos recém-nascidos e se estende pelas demais faixas etárias.
- Todas as vacinas disponíveis no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) são gratuitas.
Fonte: Ministério da Saúde