É falso que o governo da Austrália recomendou a toda população que tomasse a ivermectina como medida preventiva contra a covid-19 e que, depois disso, o número de casos no país caiu. A afirmação foi feita em um vídeo viral pela médica Cecília Pimenta. O único tratamento contra a doença aprovado pela Austrália foi o remdesivir, que só deve ser prescrito para pacientes graves. Antes disso, o país adotou medidas como distanciamento social, higienização das mãos, restrição de viagens e lockdown.
A Universidade de Monash, que lidera a pesquisa australiana sobre o uso da ivermectina para tratar o novo coronavírus, afirmou ao Comprova que nem sequer iniciou o teste em humanos. Atualmente, a Austrália enfrenta uma segunda onda de infecções.
No vídeo, Cecília também afirma, erroneamente, que a eficácia do medicamento foi reconhecida pela agência sanitária dos Estados Unidos, a Food And Drug Administration (FDA) – o órgão orientou os pacientes de covid-19 a não tomar ivermectina. A médica também diz que o uso da ivermectina foi responsável por controlar a pandemia na Etiópia, o que já havia sido desmentido pelo Comprova. Por fim, afirma que o remédio já é considerado uma “vacina” contra o coronavírus. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), porém, não reconhece a eficácia da droga no tratamento da doença.
O Comprova conseguiu falar com Cecília Pimenta e a questionou sobre as fontes das informações que cita no vídeo. Por WhatsApp, ela sugeriu que o Comprova pesquisasse na internet artigos sobre o uso da ivermectina no tratamento da covid-19.
Como verificamos?
O Comprova buscou informações sobre Cecília Pimenta no site do Conselho Federal de Medicina (CFM) e no Google, onde encontrou o número da clínica onde ela atende. A secretária nos deu o contato direto da médica. Também buscamos informações em verificações anteriores do Comprova sobre o uso da ivermectina na Austrália e na Etiópia.
Enviamos e-mail para a médica australiana Kylie Wagstaff, que coordena a pesquisa com ivermectina para combater o coronavírus na Universidade de Monash, na Austrália, e para o doutor Thomas Borody, diretor do Centro para Doenças Digestivas, que defendeu o uso da droga pelo governo australiano. Também tentamos contato com o Departamento de Saúde da Austrália, mas não tivemos retorno.
Por fim, procuramos a assessoria de imprensa da Anvisa e os sites das autoridades sanitárias dos Estados Unidos, FDA, e da Austrália, Therapeutic Goods Administration (TGA), em busca de informações sobre o uso da ivermectina nos três países.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 5 de agosto de 2020.
Verificação
Quem é Cecília Pimenta?
Cecília Maria Pimenta é registrada no Conselho Federal de Medicina (CFM) com atuação em Minas Gerais desde 1989. Atualmente, trabalha na cidade de Uberlândia. Em seus vídeos, se apresenta como ginecologista e médica da longevidade, embora não tenha nenhuma especialidade registrada junto ao CFM. Criou um canal no YouTube em novembro de 2019, quando publicou uma palestra feita em uma igreja com o tema “A razão da superação à luz da ciência e da Bíblia”. Todos os outros três vídeos do canal foram postados a partir do dia 22 de junho deste ano e falam sobre o uso da ivermectina para tratar pacientes com covid-19. Em um deles, cita como fonte a médica Lucy Kerr, cujo conteúdo sobre a ivermectina já foi apontado como enganoso pelo Comprova.
No vídeo que viralizou, um homem pediu, nos comentários, que ela indicasse os estudos que comprovam a eficácia da droga. A médica respondeu afirmando que, se ele pesquisasse, encontraria estudos contrários e favoráveis ao uso. “A ivermectina é extremamente segura e tem demonstrado resultados excepcionais em todo o mundo. Trabalhos científicos levam tempo para ser concluídos, não temos tempo”, afirmou.
Questionada sobre as fontes das informações que cita no vídeo, Cecília afirmou, por WhatsApp, que estudos e pesquisas estão facilmente disponíveis em sites como Google Acadêmico, Scielo e BVS. “Basta você só pesquisar por ‘Ivermectin and COVID 19’ que terá acesso às informações que procura”, disse. Quando o Comprova perguntou se ela poderia indicar os links desses estudos, voltou a sugerir que a reportagem fizesse uma busca no Google. “Tem tudo o que você precisa”, disse.
A ivermectina na Austrália
A pesquisa sobre o possível uso da ivermectina como tratamento do novo coronavírus teve início na Universidade de Monash, na Austrália. Os pesquisadores constataram a eficácia do medicamento em laboratório, mas com uma dosagem superior à recomendada para o uso humano. Em junho, a universidade disse ao Comprova que pacientes com covid-19 não deviam usar a ivermectina como tratamento até que testes clínicos em humanos conseguissem comprovar a eficácia e a dose segura para ingestão.
O Comprova voltou a procurar a instituição em agosto para essa verificação. A doutora Kylie Wagstaff, que coordena a pesquisa com ivermectina na universidade, afirmou por e-mail, que, embora os testes pré-clínicos tenham se mostrado promissores, eles ainda não usaram a ivermectina em humanos. Isso porque a Austrália não tinha muitos pacientes para serem testados até recentemente, quando o país começou a passar por uma segunda onda de infecções. Ela também disse desconhecer a adoção da droga pelo governo do país para enfrentar a pandemia.
Segundo o site da Therapeutic Goods Administration (TGA), autoridade sanitária australiana, até o momento não há remédios ou vacinas comprovados para tratar ou prevenir a covid-19. Em 10 de julho, a TGA aprovou o primeiro tratamento específico para a doença no país, o remdesivir. Mesmo assim, só deve ser aplicado em pacientes hospitalizados com sintomas graves. Em 4 de agosto, o médico australiano Thomas Borody, diretor do Centro para Doenças Digestivas (Centre for Digestive Disease), defendeu que o governo adote a ivermectina como parte de um coquetel para tratar o novo coronavírus. O Comprova enviou e-mail para o doutor Borody para saber se ele receitou a medicação para seus pacientes, mas não teve retorno até o fechamento dessa verificação.
Pandemia na Austrália
A Austrália identificou o primeiro caso de covid-19 em 25 de janeiro, um homem vindo da província de Wuhan, na China. Seis dias depois, o governo determinou que todos os estrangeiros vindos da China passassem por um período de quarentena em outro país antes de serem autorizados a entrar em território nacional. Em fevereiro, as restrições foram ampliadas para a entrada de estrangeiros vindo de outras nações.
No início de março, os australianos registraram a primeira morte pela doença e os primeiros casos de transmissão comunitária do novo coronavírus. A partir daí, medidas mais enérgicas foram adotadas. A Austrália fechou suas fronteiras, impôs medidas de distanciamento social e fechou serviços não essenciais. O país também injetou 17,6 bilhões de dólares australianos (R$ 67 bilhões) em um pacote econômico e investiu outros 2,4 bilhões (R$ 9,1 bilhões) em saúde.
O afrouxamento gradual dessas medidas teve início em maio. Mas, em junho, os australianos passaram a lidar com uma segunda onda de infecções e o governo teve que adotar o lockdown em Melbourne, onde o comércio voltará a ser fechado a partir desta sexta-feira, 6 de agosto. O retorno das sessões presenciais do Parlamento federal, que ocorreria agora em agosto, também foi adiado.
Atualmente, o governo federal australiano mantém restrições de viagem, obrigação de quarentena para pessoas que chegam ao país e orienta os cidadãos a manter medidas de higiene e isolamento em casos de sintomas. Governos locais podem impor barreiras sanitárias. A Austrália também restringiu a venda de hidroxicloroquina e de medicamentos essenciais, como analgésicos, anticoagulantes e antidepressivos, para garantir o suprimento para pessoas que precisam dessas substâncias. Até esta quarta-feira (5), a Austrália tinha registrado 19.445 casos de covid-19 e 257 mortes pela doença, segundo dados da Johns Hopkins University.
O que diz a FDA?
Cecília Pimenta disse que a Food and Drug Administration (FDA), órgão sanitário dos Estados Unidos, reconheceu que a ivermectina funcionou em laboratório para combater o coronavírus. O site da FDA, porém, informa que as pessoas não devem tomar a medicação para prevenir ou tratar a covid-19 e cita a pesquisa da Universidade de Monash, mas lembra que “esse tipo de estudo laboratorial é comumente usado nos estágios iniciais do desenvolvimento de remédios” e que “testes adicionais são necessários para determinar se a ivermectina pode ser apropriada para prevenir ou tratar a covid-19”.
A FDA também negou haver uma autorização emergencial para que a droga seja usada por pacientes do coronavírus e orientou as pessoas a não consumirem medicamentos de ivermectina feitos para tratar animais.
O que diz a Anvisa?
Em e-mail enviado ao Comprova, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirmou que não existem medicamentos aprovados para prevenção ou tratamento da covid-19 no Brasil. Sobre a ivermectina, a Anvisa disse que “não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso”. A agência também lembrou que o uso do medicamento para indicações não previstas na bula é de escolha e responsabilidade do médico que o prescreve.
No dia 22 de julho, a Anvisa determinou que as farmácias devem reter a receita das pessoas que compram ivermectina; o que garante um controle maior à venda da droga no Brasil.
Etiópia
Em julho, o Comprova mostrou ser falso que os países da África tenham controlado a pandemia de covid-19 com a ivermectina. No caso da Etiópia, logo após a confirmação do primeiro caso, em 13 de março, o governo fechou escolas, proibiu aglomerações e pediu à população que adotasse o isolamento social. Em 20 de março, a Etiópia adotou novas medidas, como o fechamento de bares e restaurantes, o cancelamento de voos para dezenas de países e a obrigatoriedade de quarentena para todos os que desembarcassem no país. Em 8 de abril, o governo decretou estado de emergência nacional por causa da pandemia.
A ivermectina não é indicada pelas autoridades sanitárias da Etiópia para a prevenção ou tratamento da covid-19. Segundo o governo, não há medicamento eficaz para os pacientes e a prevenção é o melhor método para controlar o contágio da doença. O país recomenda que os cidadãos lavem as mãos com frequência, evitem tocar o nariz e a boca, usem máscara e mantenham distância das outras pessoas.
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova verifica informações sobre as políticas públicas do governo federal e a pandemia de covid-19 que tenham viralizado nas redes sociais. É o caso da vídeo da médica Cecília Pimenta, que teve 11,3 mil visualizações no YouTube e 10,4 mil compartilhamentos no Facebook. A verificação se torna ainda mais importante quando se trata de medicações e tratamentos para o coronavírus, porque esses conteúdos podem induzir as pessoas a automedicação e expô-las a riscos de contaminação, por acreditarem que há uma cura comprovada e barata para a doença.
A ivermectina tem sido tema recorrente de desinformação. Além das verificações citadas acima, o Comprova também mostrou que as declarações de médicos têm sido distorcidas para alegar a eficácia da droga no combate à covid-19. Além disso, o Comprova já verificou conteúdos sobre as vacinas testadas no Brasil, o uso de máscaras, e que a cloroquina cura a doença. Também mostrou ser enganoso o uso via retal de ozônio como tratamento.
Falso para o Comprova é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edição para modificar o seu significado original e divulgado de maneira deliberada para espalhar uma mentira.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras. Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19.
Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance. Este conteúdo foi investigado por Folha e UOL, e verificado por Gazeta, Estadão, Jornal do Commercio, Piauí e SBT.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GaúchaZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).