Conteúdo verificado: vídeos dos médicos Álvaro Galvão (RO) e Rafael Freitas (PR) no YouTube defendem o uso profilático da ivermectina como tratamento para a covid-19, sob o argumento de que a medicação reduziu o número de casos graves da doença na África.
É falso que a pandemia de covid-19 esteja sob controle na África por causa do uso preventivo da ivermectina, um medicamento contra vermes. Em vídeos publicados em seus canais do YouTube, os médicos Álvaro Galvão, de Rondônia, e Rafael Freitas, do Paraná, afirmam que o consumo profilático de ivermectina pode evitar sintomas e o agravamento da covid-19.
Até aqui, não há nenhuma comprovação científica de que a ivermectina seja um medicamento eficiente para tratar pacientes com covid-19. É o que afirmam o Ministério da Saúde, a Food and Drug Administration (FDA), autoridade sanitária dos Estados Unidos, e os próprios pesquisadores que estudam o uso da droga contra o vírus SARS-CoV-2 em laboratório.
A pandemia também não está sob controle na África. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença tem avançado numa velocidade acelerada no continente. A Etiópia, citada em um dos vídeos como um país que teria adotado pouquíssimas ações por causa do uso profilático da ivermectina, tomou diversas medidas para tentar controlar o contágio. As autoridades locais fecharam escolas e restaurantes, proibiram aglomerações, decretaram quarentena obrigatória para todos que chegassem ao país e decretaram estado de emergência por causa da pandemia.
A Marinha do Brasil também não aprovou um protocolo para o uso de ivermectina para tratar pacientes com covid-19, outra informação difundida em um dos vídeos.
Como verificamos?
A verificação foi dividida em três partes. Inicialmente, o Comprova buscou informações sobre a situação da pandemia no continente africano e, especialmente, na Etiópia – onde, segundo o médico Álvaro Galvão, os números da doença seriam bastante inferiores em comparação aos demais países. Para checar o número de casos, óbitos e testes realizados para identificar a doença na África foram utilizadas as bases de dados do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e do Our World in Data, plataforma ligada à Universidade de Oxford, no Reino Unido.
A segunda etapa concentrou-se na investigação do uso da ivermectina no tratamento de pacientes com a covid-19. Foram consultados estudos científicos, notícias e outras verificações realizadas pelo Comprova sobre as relações do medicamento com a doença causada pelo coronavírus.
Por último, o Comprova entrou em contato com os autores dos vídeos. Tentou localizar Álvaro Galvão por meio do celular da clínica que aparece em seus vídeos no YouTube. E enviou mensagem para Rafael Freitas pelo e-mail cadastrado na conta dele no YouTube e via Twitter.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 10 de julho de 2020.
Verificação
Situação da África
Até a data de fechamento deste texto, 10 de julho, o continente africano contabilizava 543.136 casos e 12.474 óbitos causados pela covid-19, segundo os dados do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (Africa Centres for Disease Control and Prevention).
Em 8 de julho, quando a África superou a marca de 500 mil casos da doença, a OMS alertou que a pandemia estava se espraiando em uma velocidade acelerada, apesar de esse crescimento não ser uniforme em todo o continente. O informe da organização afirma que os casos mais que dobraram no último mês em 22 países africanos e que em dois terços do continente há transmissão comunitária do vírus, aquela em que não é mais possível localizar a origem da infecção. Segundo os dados da OMS, em menos de cinco meses, as mortes causadas pelo coronavírus superaram as causadas pela epidemia de ebola na África Ocidental, que ocorreu entre 2014 e 2016.
No mesmo informe, a OMS afirmou que 71% dos casos de covid-19 no continente africano estão concentrados em cinco países: Argélia, Egito, Gana, Nigéria e África do Sul. E que 80% dos infectados possuem 60 anos ou menos.
Em uma entrevista coletiva realizada em 9 de julho, John Nkengasong, diretor do CDC africano, endossou o alerta da OMS pedindo atenção ao crescimento do número de casos e óbitos no continente. De acordo com Nkengasong, os dados sobre a doença em muitos países africanos são insuficientes ou não são confiáveis – o que, segundo ele, dificulta o controle da pandemia.
O diretor destacou, também, a necessidade de aumentar a capacidade de testagem da população no continente. De acordo com os dados da plataforma Our World in Data, a maior parte dos países africanos não possui capacidade para testar todos que apresentam sintomas da doença.
A covid-19 na Etiópia
Ao comentar no vídeo enganoso os números da covid-19 na Etiópia, o médico Álvaro Galvão destaca que o aparente sucesso do país no controle da doença estaria exclusivamente relacionado ao uso profilático da ivermectina para o tratamento de outras doenças por grande parte da população. O médico afirma que as únicas medidas tomadas pelas autoridades etíopes para frear a covid-19 teriam sido “a lavagem de mãos, o distanciamento social e o controle de temperatura que nos aeroportos”.
Essa informação é falsa. Após a confirmação, em 13 de março, do primeiro caso de covid-19, as autoridades da Etiópia rapidamente anunciaram uma série de medidas para tentar controlar o avanço da doença no país. Três dias depois do registro do primeiro paciente infectado pelo coronavírus, o governo instituiu o fechamento de escolas, a proibição de aglomerações e o apelo à população para a prática do isolamento social.
Em 20 de março, novas medidas foram anunciadas, como a obrigatoriedade do cumprimento de quarentena para todos aqueles que desembarcassem no país, a interrupção dos voos da maior companhia aérea etíope, a Ethiopian Airlines, para 30 países e o fechamento de bares e restaurantes. No dia 8 de abril, o governo decretou estado de emergência em todo o país.
As autoridades sanitárias da Etiópia não indicam a ivermectina para a prevenção ou tratamento da covid-19. O portal do governo que reúne as informações sobre a doença no país afirma que, apesar de várias drogas estarem em estudo, até o momento não existe um medicamento eficaz para os pacientes com o coronavírus e destaca que, para aqueles que desenvolvem sintomas graves, são administrados os chamados tratamentos suporte.
O portal alerta que a prevenção é o método mais eficaz para controlar o contágio da covid-19 e endossa as recomendações da OMS, como lavar as mãos com frequência, evitar tocar o nariz e a boca, usar máscaras e manter distância das demais pessoas.
Outro dado falso que o médico Álvaro Galvão apresenta no vídeo diz respeito ao número de casos e óbitos causados pela covid-19 na Etiópia até o dia 31 de maio. Segundo ele, até essa data o país contabilizava 731 casos e 6 mortes. O boletim oficial do Ministério da Saúde etíope revelou números maiores: 1.172 caos e 11 mortes.
Para compreender se a população etíope utiliza a ivermectina de modo profilático para o tratamento de outras doenças, conforme apontado no vídeo, a reportagem procurou a Embaixada da República Democrática Federal da Etiópia no Brasil, o Ministério da Saúde da Etiópia e o Instituto Etíope de Saúde Pública. Até o fechamento deste texto, os contatos não deram retorno.
Até a publicação desta verificação, a Etiópia registrou 7.120 casos e 124 óbitos causados pela covid-19. Os dados são da Universidade Johns Hopkins.
Os médicos
Segundo o site do Conselho Federal de Medicina, Álvaro Luis Galvão Ignácio é especialista em cirurgia vascular. Atualmente, tem registro médico em Rondônia, mas já atuou em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Em seu site pessoal, ele conta que se formou em Medicina em Porto Alegre e foi militar, com a patente de tenente médico, quando serviu no Hospital de Guarnição de Porto Velho. Atualmente, trabalha no Day Hospital Center Clínica, do qual é sócio, na cidade de Ji-Paraná, no interior de Rondônia. Em 2019, Álvaro recebeu o título de cidadão do estado da Assembleia Legislativa. No YouTube, ele já fez outros vídeos sobre a pandemia, como os intitulados “O uso da hidroxicloroquina” e “Diferenças do isolamento vertical e horizontal”.
Rafael Sousa de Freitas tem registro ativo no Conselho Regional de Medicina do Paraná desde 2014. Na descrição do seu canal do YouTube, ele se apresenta como cristão, formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), escritor, palestrante motivacional e treinador de alta performance nos estudos. No Twitter, se descreve como de direita e “pró-vida”. No Instagram, declara apoio ao presidente Jair Bolsonaro e ao presidente americano Donald Trump. Seus vídeos sobre a experiência como médico trazem títulos como “Homem engasga por esconder os dentes” e “Chamei mulher obesa de elefante”.
Nenhum deles respondeu às tentativas de contato do Comprova por WhatsApp, e-mail ou Twitter.
A ivermectina e a covid-19
A ivermectina está registrada na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como “medicamento contra infecções causadas por parasitas”. Segundo a Food and Drug Administration, órgão de vigilância sanitária dos Estados Unidos, a ivermectina é liberada para humanos no tratamento de vermes intestinais e de parasitas tópicos, como piolho e rosácea. Além disso, o remédio é usado para o tratamento de vermes em diversas espécies de animais. Possíveis efeitos colaterais incluem vômito, diarreia, dor estomacal, erupções cutâneas, eventos neurológicos (como convulsões, tontura e confusão), queda repentina da pressão arterial e danos ao fígado.
O Ministério da Saúde afirma que “ainda não existem evidências clínicas suficientes que permitam tecer qualquer recomendação quanto ao uso de ivermectina em pacientes com covid-19”. A FDA adota o mesmo posicionamento.
Em abril, um estudo da Universidade de Monash, na Austrália, apontou pela primeira vez a possibilidade de a ivermectina atuar como inibidor in vitro do SARS-CoV-2. No início de junho, em e-mail enviado ao Comprova, o Departamento de Medicina, Enfermagem e Ciências da Saúde da instituição explicou que o estudo demonstra apenas a eficiência em laboratório e que “a ivermectina não pode ser usada em pacientes com covid-19 até que outros testes e ensaios clínicos tenham sido conclusivos em estabelecer a eficácia do medicamento em níveis seguros para dosagem em humanos”.
Em verificação do Comprova publicada no dia 8 de julho, o infectologista Marcelo Carneiro, professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e integrante da Associação Brasileira dos Profissionais em Controle de Infecções e Epidemiologia Hospitalar (Abih), reforçou que não está comprovada a eficácia da ivermectina em humanos.
— Já está provado que as doses de ivermectina precisam ser extremamente altas para funcionar. Então, em laboratório ela funciona como antiviral. Mas não existem doses para humanos e, se existir, será extremamente tóxica — explicou.
A Marinha
Álvaro Galvão diz que a Marinha brasileira desenvolveu um protocolo para uso da ivermectina e tratou pacientes com covid-19 com o medicamento. Em uma nota enviada por e-mail ao Comprova, o departamento de imprensa disse que produziu uma “minuta de proposta de protocolo”, mas que não está em uso. A Marinha disse ainda que adota em suas unidades “todos os protocolos clínicos e terapêuticos” divulgados pela OMS, pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa “a fim de orientar seus profissionais de saúde quanto às medidas de condução e de tratamento dos pacientes infectados pelo coronavírus no âmbito do Sistema de Saúde da Marinha”.
Por que investigamos?
O Comprova tem investigado conteúdos suspeitos sobre a pandemia que viralizam nas redes sociais. Como ainda não existem vacina ou cura, muitas das verificações têm sido sobre medicamentos que supostamente combatem a covid-19. O tema é de extrema importância porque a automedicação sem orientação médica, além de não curar o coronavírus, pode ser prejudicial para as pessoas e colocar a saúde delas em risco.
Nesse contexto, a ivermectina tem sido muito citada em conteúdos que sugerem o seu uso preventivo, ainda que não exista nenhuma comprovação científica da sua eficácia. No último mês, o Comprova já mostrou que não havia provas de que o medicamento funcionasse, que entrevistas sobre o remédio estavam sendo retiradas de contexto, e que as autoridades médicas não recomendam a automedicação.
Até o fechamento dessa verificação, os vídeos dos médicos Álvaro Galvão e Rafael Freitas tinham, juntos, 336.175 visualizações no YouTube. Eles também atingiram 4.639 e 3.162 interações no Facebook e Twiter, segundo a plataforma de monitoramento Crowdtangle.
Falso para o Comprova é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para modificar o seu significado original e divulgado de maneira deliberada para espalhar uma mentira.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras. Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19.
Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance. Este conteúdo foi investigado por Jornal do Commercio e Nexo, e verificado por Folha, SBT, UOL, Estadão e Piauí.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GaúchaZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).