Descendente de italianos, Quintina Salvadori Anderle foi a quinta filha dos 13 herdeiros de Jacinto e Maria Rottoli. Nascida em abril de 1928, na localidade de Daltro Filho, incorporada mais tarde ao município de Imigrante, morreu, no último dia 6, acometida pelo coronavírus.
Dona Quinta, como era chamada, passou seus 92 anos de vida rodeada de gente. Seguindo o modelo dos pais, montou uma família numerosa ao lado do marido, Alcydes, morto há mais de 40 anos. Teve 10 filhos, 24 netos e 15 bisnetos – se somados os "agregados" dos Anderle, eram mais de 70 parentes.
– Ela poderia entrar para o Guinness, de tanta fralda que trocou. Passou a vida cuidando dos outros – conta uma de suas filha, Eliane Anderle Giongo.
Dona Quinta casou-se aos 18 anos e sempre morou na comunidade de Arroio Augusta Alta, na zona rural de Roca Sales, na serra gaúcha. Pela imensa família, intimamente ligada à cultura italiana, era tratada como a "nonna", a responsável por reunir filhos e netos ao redor de uma mesa para partidas de canastra abastecidas com sua tradicional receita de cueca-virada.
"Quem conhece a tradição da família italiana sabe da importância da figura da nona, da matriarca da família. Sim, porque nossa família vive o matriarcado", escreveu uma de suas netas, Paula Anderle, no Facebook, no dia do falecimento da avó.
Segundo seus filhos, Quintina preferia comunicar-se em italiano, a língua que tinha mais afinidade. Pelo português truncado, ficou conhecida pelas confusões batizadas de "pérolas da Dona Quinta" – certa vez, quando um dos netos passou no vestibular, comentou que havia sido aprovado no "estribular".
Vaidosa, mantinha os cabelos bem pintados de preto e as unhas sempre feitas. Além do carteado, tinha gosto pelo bingo, quando eram liberados, e pelos passeios familiares. Após criar os filhos em um cotidiano interiorano, passou a ir a Porto Alegre, ao litoral gaúcho e a localidades onde moravam seus parentes, em Brasília e Mato Grosso, com frequência.
– Depois que os filhos cresceram, começou a aproveitar a vida. Sempre foi uma pessoa muito disposta e alegre. Falávamos que ela ia para onde o vento levava. Descobriu o mundo e ninguém mais segurava – diz Eliane. – Ela não tinha medo. Dizia que, se pegasse um ônibus errado, depois, era só pegar outro.
A idosa teve de interromper suas viagens em junho deste ano, ao se submeter a uma cirurgia cardíaca para curar um quadro de insuficiência respiratória. Poucos dias depois, sentiu os primeiros sintomas da covid-19, sendo internada e entubada na UTI do Hospital de Clínicas, em Porto Alegre.
Temerários de que a matriarca, isolada na unidade, se sentisse abandonada, seus familiares participaram de videochamadas diárias, em uma iniciativa viabilizada pela Grupo de Cuidados Centrados no Paciente do Clínicas. Fizeram, inclusive, uma celebração religiosa, reunindo, pela tela do celular, quase 50 pessoas.
Quintina saiu do respirador no último dia 3, quando os médicos avaliaram que seus pulmões poderiam retomar sua atividade. Resistiu durante um final de semana, despedindo-se dos Anderle na segunda-feira seguinte, menos de uma hora após a derradeira visita remota ao seu leito hospitalar.
– Senti que ela precisava, para fazer sua partida, ouvir mais uma vez os filhos – afirma Eliane.
Ela foi enterrada, sem velório, como pregam os protocolos da pandemia, no jazigo da família, em Roca Sales. De suas casas, filhos, netos e bisnetos participaram da despedida da matriarca reunindo-se, mais uma vez, por videochamada.
"Hoje, virou estrelinha a mulher mais linda e mais forte, uma das pessoas mais extraordinárias que eu tive o privilégio de conhecer. Minha nonna querida, Quintina, que enfrentou todas os desafios de ser mulher, mãe (de 10) e viúva numa sociedade machista no início do século passado. Numa das nossas conversas, ela me contou que, em um dia de luto, cruzou na rua com uma bruxa, que disse: 'tu tem uma grande família, deixa a tristeza de lado, recupera a tua força e vai viver!' E foi tudo o que ela fez, até o fim da vida. Grazie per tutto, nonna", escreveu uma de suas netas, Marina Anderle Giongo, no Facebook, resumindo o sentimento da família.