Nas últimas semanas, diferentes estudos apontaram que o percentual de pessoas com anticorpos da covid-19 necessário para barrar a pandemia em uma população pode ser até sete vezes inferior ao patamar de 60% a 70% estimado inicialmente.
É um indício positivo, mas exige muito cuidado ao ser analisado. Especialistas em infectologia e epidemiologia alertam que, mesmo pelo viés mais otimista, buscar a chamada “imunidade de rebanho” sem conter a taxa de contaminação do coronavírus resultaria em um elevado número de mortes.
Cálculos indicam que, sem ações eficazes para reduzir as infecções, atingir o nível de imunidade custaria pelo menos 6,8 mil vidas no Rio Grande do Sul (veja gráfico com diferentes cenários abaixo).
O bloqueio coletivo ocorre quando há uma fração mínima de pessoas imunes a uma doença em uma população. Em um cenário desses, alcançado por vacinação ou exposição prévia ao vírus, ainda pode haver contágios, mas sem força para gerar surtos ou epidemias.
O mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard (EUA) Marcio Sommer Bittencourt explica que o percentual necessário para atingir essa barreira natural, na verdade, é variável.
— Não é um número fixo. Depende de fatores como a heterogeneidade da população e a taxa de transmissão da doença. Uma população mais heterogênea, com parte das pessoas menos suscetíveis (à doença), e um menor grau de contaminação permitem que os efeitos da imunidade cheguem mais cedo. Cada lugar pode ter uma situação diferente — exemplifica Bittencourt.
Diferentes pesquisas indicam que, no caso da covid-19, esse patamar poderia variar entre 10%, 34% ou 43%, entre outras estimativas. Ainda assim, Bittencourt entende que a imunidade comunitária não deve ser buscada como estratégia de saúde pública no lugar de ações como prevenção individual, identificação e isolamento de casos e limitações à circulação.
Uma das razões é que a proporção de pessoas já contaminadas ainda é muito baixa — cerca de 0,5% no Rio Grande do Sul, ou até mesmo 5% na Espanha, um dos países mais atingidos pela pandemia. Além disso, mesmo com base nas estimativas mais otimistas, buscar a imunidade de grupo desprezando as medidas para inibir a circulação do vírus aumentaria o potencial de óbitos ao longo da pandemia
— Reduzir o contágio não apenas achata a curva, mas diminui o número absoluto de contaminações e de mortes que teremos ao final da pandemia. Isso ocorre justamente porque o percentual para a imunidade de rebanho não é fixo — observa Bittencourt.
Doutor em Epidemiologia e professor de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Lotufo concorda que os novos estudos não servem para justificar flexibilizações descontroladas do isolamento social:
— Parte da imprensa chegou a divulgar que seria mais fácil conseguir a imunidade comunitária, porque é algo que traz esperança para as pessoas. Mas, na verdade, traz um custo elevado de mortes — observa Lotufo.
A boa notícia é que, se forem mantidas ações eficazes de combate à proliferação do coronavírus, os efeitos desse tipo de imunização podem ser sentidos antes do que se pensava inicialmente.
Até esta quinta-feira (23), segundo dados da Secretaria da Saúde, o Rio Grande do Sul tinha 54.841 casos confirmados e 1.456 mortes em decorrência da covid-19.