A piora na classificação de bandeiras na Região Metropolitana nesta semana, puxada pelo aumento de internações por coronavírus em unidades de tratamento intensivo (UTI) de Porto Alegre, não deve ser colocada na conta de municípios do Interior que enviaram pacientes para buscar atendimento na Capital, indica análise de GaúchaZH.
Das 103 internações graves por coronavírus desta segunda-feira (22) na Capital, 56 (54,3%) eram de pacientes de outras cidades, segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) — a proporção está dentro do ritmo anterior à pandemia, que variava entre 50% e 60%.
A participação do Interior na ocupação de leitos de Porto Alegre segue premissa do Sistema Único de Saúde (SUS), cujo desenho define que metrópoles concentrem recursos e hospitais modernos justamente para atender a cidades menores, explica o professor de Saúde Pública da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Dário Pasche.
Como não é possível montar um hospital em todas as cidades, a vinda de uma pessoa do Interior para a Capital em busca de atendimento é esperada. Quando o paciente usa o SUS, quem busca a vaga em outro município é o governo do Estado (leia sobre o processo adiante).
— Não dá para pensar a saúde do município fora do contexto regional. É uma definição e diretriz constitucional do SUS. Historicamente, grandes cidades concentram recursos públicos, pela possibilidade técnica e logística. Não vamos imaginar que toda cidade terá hospital. Porto Alegre, então, receberá pacientes de média e alta complexidade hospitalar do Interior. É fantasiosa a ideia de que pacientes invadem — afirma Pasche.
Os hospitais de referência de Porto Alegre para casos graves de covid-19 pelo SUS são Clínicas e Conceição, que recebem pacientes de municípios sem UTI ou cuja capacidade já está no máximo. Juntas, as instituições atendiam a seis a cada 10 internados por coronavírus em UTIs na manhã desta terça-feira (23) – ambas recebem dinheiro do Ministério da Saúde para cuidar da população gaúcha como um todo.
Via de regra, cidades da Região Metropolitana são as que mais enviam pacientes a Porto Alegre, um quadro que se mantém na pandemia: dos 56 pacientes de fora da Capital internados em UTIs, 35 eram de municípios vizinhos. Alvorada e Viamão contribuem mais.
A classificação das bandeiras de risco é aplicada para regiões e não por cidade — ou seja, a bandeira vermelha avaliou a epidemia do coronavírus não só de Porto Alegre, mas também das cidades vizinhas que compõem a Região Metropolitana.
Outros 21 internados na Capital são de outros municípios do Estado, mas a prefeitura não especifica quais nem a região do Rio Grande do Sul à qual pertencem.
O Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) é a favor que o comércio seja restringido na Capital com base nas internações apenas de porto-alegrenses. O argumento é de que olhar para a ocupação dos hospitais como um todo na cidade indica erroneamente que a epidemia porto-alegrense é pior do que o real.
— Não que sejamos contrários à internação de quem é do Interior, mas a métrica usada por Porto Alegre para fazer bloqueio não leva em conta que recebemos pacientes de fora. São três meses de epidemia aqui e houve aumento de leitos, mas a prefeitura diz que não foi o suficiente e que agora precisamos dar um passo para trás. Enquanto isso, os hospitais Parque Belém e Beneficência Portuguesa estão prontos para abrir leitos. Só falta decisão da prefeitura — diz o presidente, o médico obstetra Marcelo Matias.
O governo do Estado e a própria prefeitura de Porto Alegre rejeitam o argumento. Em nota enviada a GaúchaZH, a Coordenação do Comitê de Dados da gestão Eduardo Leite destacou que a lotação de UTIs é um dentre 11 indicadores avaliados para aplicar bandeiras, os quais levam em conta não só o cenário da cidade, mas também da macrorregião e da região.
O Palácio Piratini salienta que a estratégia "considera a capacidade de cada macrorregião de saúde e do Estado como um todo, uma vez que este modelo de regulação de leitos precede a própria chegada da pandemia" e acrescenta que “as internações em Porto Alegre de pacientes de outras cidades são predominantemente da própria macrorregião da área metropolitana, o que impacta na bandeira vermelha também para as regiões de Canoas e Novo Hamburgo". Por fim, reconhece que o Estado "adotou uma série de medidas de flexibilização de protocolos para as regiões de bandeira vermelha".
O secretário-adjunto da Saúde de Porto Alegre, Natan Katz, diz que a maior parte dos pacientes de fora da Capital nas UTIs são da Região Metropolitana e que toda a zona recebeu bandeira vermelha — portanto, não haveria prefeituras “usufruindo” de comércio aberto às custas da metrópole.
Ele diz que não se culpe nenhuma cidade por enviar pacientes para a Capital e diz que “é responsabilidade da rede hospitalar de Porto Alegre cuidar dos pacientes de outros municípios”.
— A ocupação de leitos de UTI aqui em Porto Alegre cresceu tanto por pessoas de fora quanto por pessoas de Porto Alegre. A gente não pode ter preconceito porque 'não é nossa gente''. Porto Alegre é referência para todo o Estado. Se, em algum momento, algum município tiver um grande número de internações fora do esperado, identificaremos, mas isso não ocorre. Todos têm de fazer sua parte — diz Katz.
O Estado também não notou aumento fora do comum na proporção de internações do Interior na Capital por coronavírus, afirma o diretor do Departamento de Regulação Estadual da Secretaria da Saúde (SES) do Rio Grande do Sul, Eduardo Elsade. Ele pontua que a atual preocupação diz respeito à capacidade de resposta do sistema de saúde, e não à força do vírus na população.
— O modelo de distanciamento não define gravidade, e sim capacidade de atendimento, e Porto Alegre é polo de uma região. Quando se analisa a taxa de ocupação de leitos de UTI, se analisa a capacidade de atender a novos casos. Com a subida nas últimas semanas, diminuiu a capacidade de atendimento, e Porto Alegre e Região Metropolitana foram colocadas em bandeira vermelha. A Capital tem hospitais com investimentos federais no Clínicas e no Conceição, que são investimentos para a população do Rio Grande do Sul, não só de Porto Alegre — diz Elsade.
No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, as internações em UTIs por pacientes de fora da Capital pularam de uma média de 20 por mês para 80, segundo a médica intensivista e coordenadora do time de resposta rápida, Thais Buttelli — acima, portanto, do ritmo da cidade. Na terça-feira (23), mais da metade dos pacientes suspeitos ou confirmados para coronavírus em UTIs eram de fora de Porto Alegre, com maior parcela da Região Metropolitana.
— Porto Alegre se responsabiliza por toda a Região Metropolitana, que não dá conta de tratar os seus pacientes com coronavírus. É incongruente olhar apenas para pacientes de Porto Alegre quando o Clínicas e o Conceição recebem a demanda e precisarão tratar a todos. Agora é o momento da população se distanciar, senão, no início de julho, podemos lidar com o colapso do sistema de saúde — afirma Thais.
No Grupo Hospitalar Conceição (GHC), dos 25 confirmados para coronavírus internados nesta terça-feira (23), 18 são de fora de Porto Alegre, mas apenas quatro provêm de cidades com bandeiras mais brandas do que a Capital.
— Quando chega o inverno, os pacientes que exigem suporte respiratório existem com ou sem covid. O que teve de diferente neste ano é que o Rio Grande do Sul aumentou o número de vagas de UTI disponíveis por causa da pandemia. Agora, se essas vagas serão suficientes, a gente não sabe — afirma Alexandre Bessil, gerente das Interunidades de Emergência do GHC.
Como funciona o envio de um paciente do Interior à Capital?
- Quando o paciente se trata no Interior pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e precisa de um leito de UTI, o médico responsável acessa, pelo computador, um sistema interno conectado à Central de Regulação de Leitos, um departamento da Secretaria Estadual da Saúde (SES) que detém um mapa da oferta de vagas no Rio Grande do Sul.
- O governo estadual, então, contata uma prefeitura com leito disponível e solicita que a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) reserve a vaga em um hospital, escolhido de forma conjunta.
- A instituição só costuma negar o atendimento por questões técnicas, como a avaliação de que o paciente não precisa de UTI ou que o próprio hospital não tem condições de atender.
- Se o paciente busca UTI pelo plano de saúde, é o próprio convênio que busca uma vaga em outro hospital.