André Kalil já perdeu dez quilos em pouco mais de dois meses. Dorme cerca de quatro horas por noite, corre 10 quilômetros todas as manhãs e, várias vezes por semana, se esquece de almoçar.
— Isso acontece quando você fica muito intenso no trabalho mas, dessa vez, não é por um dia ou uma semana, são meses. A gente tem que se lembrar um pouco do que é normal.
Aos 54 anos, 30 deles nos EUA, o infectologista brasileiro da Universidade de Nebraska Medical Center lidera as pesquisas com o antiviral remdesivir, primeiro remédio liberado pelo governo americano para uso emergencial contra covid-19.
Em entrevista à reportagem, Kalil afirma que o medicamento é hoje o mais promissor para o tratamento da doença, mas ainda serão necessários novos estudos para que a droga seja autorizada para uso padrão.
— Estamos perto, mas ainda precisa de um tempo.
Resultados preliminares da primeira fase de sua pesquisa mostraram que pacientes que tomaram remdesivir se recuperaram quatro dias antes daqueles que receberam placebo. Agora Kalil anuncia a segunda fase do estudo.
Nela, todos os voluntários vão receber o antiviral, mas só metade vai tomar também um anti-inflamatório para avaliar se a combinação dos remédios melhora ainda mais a recuperação e sobrevida dos pacientes.
— Se os dados continuarem fortes e consistentes, é possível que a droga seja aprovada como de uso padrão.
Formado em medicina pela Universidade de Pelotas, o gaúcho nascido em Bagé se mudou para os EUA aos 24 anos, para fazer um curso em Miami. Ali conheceu a americana Patricia, com quem se casou e teve três filhos.
Na Universidade de Nebraska, onde atua há quase 20 anos, passou de professor assistente a referência mundial em pesquisa com doenças altamente contagiosas, liderando o time que tratou de pacientes do ebola, há cinco anos, aos de covid-19, desde fevereiro.
Kalil ressalta que o remdesivir não deve ser visto como cura, mas, sim, como tratamento, e que a vacina contra a covid-19 ainda deve demorar.
— Não sabemos quanto a pandemia vai durar, então temos que manter energia para continuar a batalha. Se você vai correr uma maratona e acelera nos primeiros 10 km, você não termina. A ideia é manter uma velocidade em que possa produzir efetivamente, mas não se esgote antes do tempo.
Pergunta - Como começou sua pesquisa com o remdesivir?
André Kalil - Em função da Covid-19. No fim de janeiro, entramos em contato com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), conglomerado federal que lida com pesquisa médica nos EUA, e conseguimos escrever o protocolo do ensaio clínico e ter todos os níveis de aprovação dos NIH e da universidade em poucas semanas. Recebemos 15 pacientes do cruzeiro Diamond Princess na nossa unidade de quarentena e iniciamos o protocolo com um deles no dia 21 de fevereiro.
Os resultados iniciais para o remdesivir não eram tão conclusivos. O que mudou?
O estudo se ampliou muito. Hoje são 68 hospitais, 50 nos EUA e 18 em países como Cingapura, Coreia do Sul, Japão, Alemanha. A primeira parte da pesquisa foi redemsivir versus placebo, com mais de mil pacientes. Os dados preliminares de 500 pacientes mostram que houve uma recuperação quatro dias mais rápida dos que receberam remdesivir se comparados aos que receberam placebo, de 15 para 11 dias (de recuperação). Foi significativo.
Na mortalidade, não atingiu o que chamamos de significância estatística, no sentido de que seria preciso um número maior de pacientes observados. Mas o ensaio não foi planejado só para ver mortalidade, foi feito para ver a recuperação clínica dos pacientes. O fato de a mortalidade ter sido também mais baixa para quem tomou o antiviral - 8% do remdesivir versus 11,6% do placebo - também corrobora o fato de que, se os pacientes estão conseguindo se recuperar mais rapidamente, a medicação pode estar ajudando na sobrevivência deles.
Qual é o próximo passo?
A gente decidiu que o ensaio clínico terá uma mudança no desenho e vamos para a segunda parte. Agora, não há mais placebo. Todos os pacientes vão receber o remdesivir e a metade vai receber também um anti-inflamatório usado contra artrite reumatoide, e a outra metade recebe mais placebo. A ideia é saber se, adicionando um anti-inflamatório em conjunto com o remdesivir, vai ter feito ainda mais benéfico.
Hoje o remdesivir é a substância mais promissora contra a covid-19?
Do ponto de vista científico, não existe neste momento nenhum outro estudo randomizado duplo-cego, com placebo controlado, como o nosso, que tenha mostrado uma medicação efetiva. É a evidência científica mais favorável ao tratamento do covid-19.
Especialistas dizem que nenhum medicamento será a cura para o covid-19 e que precisamos esperar a vacina, que ainda demora. O sr. concorda?
Está certo. O remdesivir não é cura, é tratamento. A cura elimina a doença e tem sobrevida de 100%. Esse não é o caso do remdesivir nem de nenhuma outra medicação.
Quando teremos resultado robusto para que o remdesivir seja receitado de maneira padrão nos EUA?
Entre o final de maio e o meio de junho. Os benefícios são significativos para os pacientes. Se os dados continuarem fortes e consistentes é possível que seja uma droga para ser aprovada como de uso padrão.
Mas, para chegar nesse ponto, temos que ter os dados de todos do ensaio, do nosso e dos outros. Estamos perto, mas ainda precisa de um tempo.
O governo americano analisou os dados do seu estudo e liberou o uso emergencial para o remdesivir. Por que não houve o mesmo entusiamo e ação em relação à cloroquina, que era defendida pelo presidente Donald Trump?
Não há dados científicos que provem os benefícios da cloroquina e da hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19. A diferença é onde há dados e onde não há.
Trump e Bolsonaro defendiam o uso da cloroquina sem prova científica em casos de Covid-19. A ação de governantes pode ter impacto na ciência e pressionar por resultados?
Não sinto nenhuma pressão. Para mim, a ciência vai ter que ser feita de maneira adequada e de forma que proteja meus pacientes. Vai sempre haver gente com opinião diferentes, seja político, amigos, familiares, colegas, mas temos que lidar com essa situação, baixar a cabeça e fazer o trabalho que deve ser feito.
Raio-X
André Kalil, 54, é infectologista e pesquisador na Universidade de Nebraska Medical Center, nos EUA. Formou-se em medicina pela Universidade Federal de Pelotas (RS); estudou medicina geral na Universidade de Miami e fez especialização em infectologia pela Universidade Harvard.