Dois meses após ser importado da Europa, o coronavírus rompe barreiras da desigualdade social e atinge, de forma lenta, a periferia de Porto Alegre. O avanço é ilustrado pela mudança no perfil da procura a hospitais que atendem a pacientes graves internados em Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) para adultos.
Se antes a maioria era atendida no Hospital Moinhos de Vento e no Mãe de Deus, cujo tratamento para covid-19 ocorre apenas por convênio ou particular, o cenário era outro nesta segunda-feira (11): quatro a cada 10 casos graves em UTIs estavam no Hospital Conceição, que atende sobretudo moradores da zona norte da Capital e da Região Metropolitana e apenas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A seguir, estão o Hospital de Clínicas, cuja maioria dos pacientes também recebe atendimento gratuito e uma parte provém do Interior, e o Hospital Ernesto Dornelles, que trata apenas por convênio ou particular, em especial pacientes das classes B e C. No total, 62 pessoas estão internadas em UTIs da cidade.
Para além do maior número de internações em UTIs, o Hospital Conceição é a segunda instituição da Capital com mais diagnósticos positivos, atrás apenas do Moinhos de Vento, que lidera o ranking ainda por influência da primeira fase da epidemia (veja o gráfico a seguir).
O cenário acende o alerta para o risco do avanço do coronavírus em regiões mais vulneráveis, onde as chances de infecção são maiores por uma série de fatores – incluindo necessidade de trabalhar diariamente e consequente exposição a riscos, menor espaço na residência para isolamento, acesso mais restrito a água encanada para lavar as mãos e falta de dinheiro para comprar álcool gel ou mesmo sabonete. No Brasil, 70% da população dependem exclusivamente do SUS, segundo o Ministério da Saúde.
Os casos na periferia são, em geral, de gente que trabalha como babá ou empregada doméstica para pessoas da classe média ou alta que viajaram ao Exterior, resume Jean Andrade, presidente e fundador da ONG Alvo Cultural, que oferece atividades culturais a moradores da zona norte de Porto Alegre e, agora, foca-se em arrecadar alimentos à população de bairros como Rubem Berta, Sarandi e Mário Quintana.
A periferia ainda não sentiu os efeitos mais graves, mas o coronavírus já está chegando e as pessoas têm que se preocupar. A população idosa segue aquilo que o presidente manda e não usa máscara nem álcool gel
JEAN ANDRADE
Presidente da ONG Alvo Cultural
— A periferia ainda não sentiu os efeitos mais graves, mas o coronavírus já está chegando e as pessoas têm que se preocupar. A população idosa segue aquilo que o presidente manda e não usa máscara nem álcool gel. Quem tem mais cuidado são os jovens e os adultos — diz.
A prefeitura de Porto Alegre confirma a chegada do coronavírus à periferia e afirma que o cenário é consequência natural da transmissão comunitária, mas diz que o distanciamento social reduziu a velocidade de entrada da doença em bairros mais pobres e acrescenta que a doença atinge o território de forma homogênea, sem surto em área específica.
Sem dados por bairros
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) não divulga os bairros com maior incidência – a justificativa é evitar falsa sensação de segurança em regiões com menos casos. A estratégia difere de cidades como Rio de Janeiro, Recife ou Nova York, que informam quais são as regiões mais afetadas para alertar moradores – a capital fluminense, em específico, adota medidas de restrição mais duras em bairros com mais casos.
Não há controle sobre a incidência da covid-19 por raça nem em relação à quantidade de licenças-saúde receitadas à população com sintomas leves em postos de saúde. Até poucos dias, a prefeitura monitorava casos graves de coronavírus em hospitais e atendimentos em postos de saúde por síndrome gripal e outras doenças respiratórias – estes tiveram aumento em março em relação ao mesmo mês do ano passado, mas queda em abril, um efeito das medidas de distanciamento social.
A estratégia mudou na quinta-feira (8), quando qualquer pessoa que busque postos de saúde com sintomas passou a ser testada. Neste momento, a curva da epidemia está achatada em Porto Alegre, como indica o gráfico a seguir – segundo a SMS, a alta nos últimos dias decorre da liberação de testagem para todos que tenham sintomas, em estratégia inspirada na Coreia do Sul.
A entrada da covid-19 na periferia acontece de forma lenta e gradual graças ao distanciamento social, segundo o médico epidemiologista e secretário adjunto da SMS, Natan Katz. Ele diz que não há, no momento, risco de falta de leitos no SUS nem na rede privada. Dentre as ações para conter o avanço em bairros mais pobres, ele cita a expansão da testagem.
— Tem casos confirmados em todos os bairros da cidade, mas não existe um foco em um bairro ou região. Hoje, o número de infecções é bem democrático e afeta todos os lugares em mais ou menos a mesma intensidade. Temos expectativa de que os números aumentem agora, com a busca das pessoas por exames nas unidades de saúde — diz Natan.
Questionado se a prefeitura pretende impor medidas de distanciamento mais duras em bairros com alta incidência da covid-19, o secretário-adjunto afirma que isso não é necessário hoje, mas que a ideia não é descartada.
— Se, em algum momento, identificarmos maior quantidade de casos em um lugar comparado a outro, pensaremos em medicina específica no local, com uma mudança de flexibilidade diferente do resto de Porto Alegre. Mas, atualmente, a gente não acredita que isso vá acontecer — acrescenta o epidemiologista.
O que dizem os hospitais
Francisco Paz, diretor técnico do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), destaca que o coronavírus ainda não atingiu com força a população mais pobre: com número de internações na UTI estável, o GHC também controla 12 postos de saúde na Zona Norte, onde atendimentos sofreram queda nas últimas semanas, em meio ao achatamento da curva epidêmica.
Quando o vírus entrou em Porto Alegre, foi por intermédio das pessoas que viajavam para o Exterior. Quem foi para Itália ou China é quem tem maior poder aquisitivo. Aos poucos, ele se espalha pela cidade
FRANCISCO PAZ
Diretor técnico do GHC
— Quando o vírus entrou em Porto Alegre, foi por intermédio das pessoas que viajavam para o Exterior. Quem foi para Itália ou China é quem tem maior poder aquisitivo. Aos poucos, ele se espalha pela cidade. Muito embora, relativamente, haja um desequilíbrio da balança, passando do Moinhos para nós, não há comprovação efetiva de que haja uma total ida para a periferia. Mantemos uma linha de atendimento na UTI mais ou menos regular e há uma redução nos postos de atendimento e na triagem — relativiza.
No Hospital de Clínicas, segunda instituição com mais internações de casos graves, a internação de moradores da periferia aumentou nas últimas duas semanas, segundo o gerente de risco e médico epidemiologista Ricardo Kuchenbecker. Ele salienta que pacientes em UTIs representam apenas uma pequena parcela do número real de afetados.
— Retardamos a entrada na periferia porque retardamos a disseminação do vírus com as medidas de distanciamento social. Isso tem impacto em todas as regiões da cidade. Mas, se tenho uma cidade grande, é preciso pensar a epidemia regionalmente. Do ponto de vista comunitário, o papel da transmissão intradomiciliar é evidente. As vigilâncias epidemiológicas poderiam estar visitando as casas das pessoas, buscando informação e testando familiares. É a fase de contenção da epidemia para evitar que o vírus se alastre na comunidade — afirma Kuchenbecker, que também é professor de Epidemiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O Hospital Ernesto Dornelles, terceiro com mais casos em UTI, registrou maior entrada de contaminados a partir de 27 de abril, diz Cezar Riche, médico infectologista e gestor do controle de infecção:
— Antes, tínhamos muitas suspeitas que não se confirmavam como coronavírus. Agora, muitas suspeitas dão positivo. Mas o ritmo está mais devagar, em comparação a outras cidades — diz Riche.
Ainda que a doença atinja a periferia, Porto Alegre tem uma das menores taxas de transmissão do coronavírus de todas as capitais brasileiras. Até a manhã desta segunda-feira (11), a cidade registrava 603 casos e 17 mortes.