Um ambiente de medo e desinformação impediu o trabalho, em pelo menos 50 cidades brasileiras, de pesquisadores envolvidos no maior estudo populacional do mundo sobre a proliferação da covid-19. Vinculados à Universidade Federal de Pelotas (UFPel), eles foram hostilizados, detidos e até mesmo algemados enquanto tentavam medir o grau de contágio pelo coronavírus. Os ataques foram registrados em municípios de Santa Catarina, no Sul do país, a capitais como Boa Vista (RR) e Santarém (PA), no Norte.
A pesquisa conduzida pela UFPel é a mesma que, aplicada em âmbito estadual no Rio Grande do Sul, informa o avanço da pandemia entre a população gaúcha. O estudo subsidia a tomada de decisões do governador Eduardo Leite sobre eventuais medidas de flexibilização ou rigidez na quarentena.
Como não há uma política de testagem em massa no país, o Ministério da Saúde encomendou à universidade uma análise semelhante em abrangência nacional. Serão aplicados testes rápidos em quase 100 mil pessoas, em três fases distintas do estudo. Desde quinta-feira, 2 mil entrevistadores foram a campo em 133 cidades espalhadas por todos os Estados. Foi quando começaram os episódios de hostilidade.
Em Boa Vista, os pesquisadores foram algemados e levados a uma delegacia, onde permaneceram das 15h30min às 6h da manhã seguinte. Em Santarém, a polícia apreendeu os testes. Houve registros de detenções em pelo menos outras 15 cidades: São Mateus (ES), Imperatriz (MA), Picos (PI), Patos (PB), Natal e Mossoró (RN), Crateús e Serra Talhada (CE), Rio Verde (GO), Governador Valadares (MG), Cachoeiro do Itapemirim (ES), Criciúma e Caçador (SC), Rondonópolis e Barra do Garça (MT).
Em alguns municípios, os testes foram perdidos. Os policiais colocaram o material no chão e abriram para ver o que tinha dentro. A manipulação sem cuidado nem atenção aos critérios de segurança invalidou o material.
— Esses dados estão perdidos e as cidades terão de ficar de fora da primeira fase da pesquisa. É triste. Um misto de medo, desinformação e muita fake news impediu um trabalho essencial para se entender a pandemia — comenta a diretor-geral do Ibope Inteligência, Márcia Cavallari.
Ataques atrasam a conclusão
Contratado via processo seletivo pela UFPel para fazer as entrevistas, o Ibope esperava concluir os 33.250 testes da primeira fase na sexta-feira. Agora, serão necessários pelo menos mais dois dias. Segundo Márcia, o trabalho terá de ser reiniciado em 50 cidades. O estudo completo prevê a realização de mais duas etapas nas próximas semanas e já há um comunicado do governo que que deseja renovar o contrato para mais três fases.
Conforme o reitor da UFPel, Pedro Hallal, todos os prefeitos foram informados sobre a pesquisa. Na véspera de as equipes irem a campo, o Ministério da Saúde enviou ofício aos gestores locais, com cópia às secretarias estaduais de Saúde, aos conselhos nacionais de Secretários de Saúde (Conass) e de Secretarias Municipais de Saúdes (Conasems). Além de financiada pelo governo federal, a pesquisa foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e um aviso sobre sua realização foi estampado na capa do site do ministério.
O estudo consiste numa testagem por amostragem. Em cada cidade, os pesquisadores sorteiam o bairro, a residência e o morador que será submetido a um teste rápido. Após uma coleta de sangue na ponta do dedo, é aplicado um questionário sociodemográfico e respondem se apresentam sintomas da covid-19. O resultado do exame sai em 15 minutos. Se der positivo, todas as demais pessoas da casa também são testadas e colocadas em isolamento, com comunicado oficial às autoridades médicas.
A partir dessa amostragem, é possível, medir quantas pessoas estão infectadas no país. Uma descoberta preliminar do estudo, restrita ao avanço da pandemia em Manaus, será divulgado na noite deste domingo no programa Fantástico.
— Manaus foi uma cidade que nos ajudou muito na aplicação da pesquisa. Em Uruguaiana também, já encerramos a coleta e foi tudo bem. É importante destacar os bons exemplos – salienta Hallal.
Segundo os coordenadores do estudo, boa parte da desconfiança da população foi motiva pela disseminação de fake news em grupos de WhatsApp. Houve relatos de que a pesquisa era falsa (apenas um pretexto para que assaltantes invadissem as casas), de que os testes não haviam sido aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e de que os próprios entrevistadores poderiam ser vetor de contágio.
Além de oficial e chancelado pelas principais autoridades sanitárias do país, o estudo é baseado em testes aprovados pela Anvisa e fornecidos pelo próprio Ministério da Saúde. Todos os pesquisadores são testados e só os negativados participam do trabalho de coleta dos dados. Para ingressar nas casas, eles vestem equipamentos de proteção individual com óculos, máscara, luvas, avental e proteção para os pés. Ao fim de cada visita, o material é descartado em sacolas plásticas.
— Eu mandei e-mail para todos os prefeitos explicando como funciona o estudo e pedindo três coisas: garantia da segurança das nossas equipes, o direito à livre circulação e apoio para descarte do lixo infectado. Esses pesquisadores deveriam ter sido recebidos como heróis – destaca Márcia Cavallari.