Além de migrar escritórios e salas de aulas para dentro de casa, a pandemia de coronavírus tem transformado cômodos particulares em consultório terapêutico nas últimas semanas. Sessões de psicoterapia e psicanálise, usualmente realizadas em ambientes neutros, passaram a ocorrer nos quartos e salas de terapeutas e pacientes, com a interação reduzida a uma pequena tela ou a uma ligação telefônica.
Para a psicanálise, vertente terapêutica na qual a neutralidade do ambiente integra o chamado setting, conjunto de regras necessárias ao processo analítico, a mudança tirou, além do divã, um naco da privacidade dos envolvidos. Profissionais que moram com outras pessoas redobraram os cuidados, estabelecendo acordos com os familiares e, quando possível, adaptando cômodos da casa para minimizar a exposição. Parte dos pacientes foi por caminhos mais inusitados: em busca de um ambiente mais reservado, há quem tenha saído de casa ou se refugiado na garagem, dentro do carro, durante os encontros.
Quem consulta com a psicanalista Diana Corso teve de se adaptar a um cenário bem diferente de seu consultório nos encontros virtuais. Um quadro com fotos de animais, bibelôs e livros da pequena biblioteca do antigo quarto de uma das filhas, escolhido para os atendimentos por ser mais reservado, tornaram-se a moldura da profissional durante a quarentena.
— A gente tem visitado intimidades. Esse era o quarto de uma menina, é lilás, tem armário dessa cor... Levei objetos do consultório e tentei transformar no mais aconchegante possível. O isolamento acústico é minha maior preocupação, então fecho a porta do quarto e do corredor — conta a psicanalista, que também passou a lidar com cenas da rotina doméstica dos pacientes, como filhos pequenos interrompendo ou acompanhando a consulta.
Já seu marido, o também psicanalista Mario Corso, resolveu investir em um ambiente mais asséptico. Atuando no andar de cima do apartamento onde vive o casal, privilegia enquadramentos mais fechados quando aparece em videochamadas. A opção por desprezar o entorno serve para evitar dispersões, mantendo o foco na consulta – os cuidados só não foram suficientes para impedir que a gata de estimação aparecesse nos atendimentos por três ocasiões.
— Gosto muito de cactos, tenho uma coleção. Mas se eles aparecerem na tela, vão virar assunto e as pessoas não vão falar dos seus problemas. Coloco (o enquadramento) numa parede neutra para evitar a conversa desnecessária — conta Mario, que segue realizando as consultas de calça, camisa social e sapato.
Encontrar o melhor ângulo está longe de ser a única mudança imposta pelos tratamentos a distância. O novo contexto implica também em lidar com contratempos de natureza tecnológica. Enquanto algumas consultas se tornaram mais longas em razão dos imprevistos, outras mudaram de formato para viabilizar os atendimentos.
Estabelecer a melhor forma de conversar, escolher a plataforma a ser usada e procurar o melhor sinal de internet tornaram-se parte da rotina dos atendimentos do médico, escritor e psicanalista Celso Guttfreind durante o distanciamento social. Se a qualidade da imagem e da conexão não raro deixa a desejar, a criatividade para transpor as dificuldades o surpreende a cada consulta.
— Atendo muitas crianças. Em uma sessão no começo da quarentena, uma delas fez um desenho e me mostrou na tela. Fiquei me espichando para olhar, a imagem não estava boa. Ela se ofereceu para mandar pelo WhatsApp. Estava tão nítida que vi detalhes que talvez nem no desenho ao vivo teria reparado — conta.
Guttfreind observou, ainda, outra nuance curiosa nos teleatendimentos. Pacientes que costumavam se consultar deitados no divã, sem contato visual com o terapeuta, pediram para restabelecer essa dimensão em videochamadas.
Nem todos, no entanto, sentem-se à vontade com tantas mudanças. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Robson Freitas Pereira teve pacientes que optaram por suspender o tratamento durante a pandemia. Quem topou seguir a distância tenta adaptar-se a sua maneira:
— Nas videochamadas, tu te vê falando. Isso é uma novidade, é quase como se tivesse que falar para si e para o outro. Normalmente, o espelho é o outro. Não dá para fingir que não acontece, mas, aos poucos, perde a importância. Algumas pessoas deixam a imagem, mas não olham para o aparelho — relata.
Na percepção de Pereira, as consultas durante a pandemia têm exigido mais dos terapeutas, que, com a distância, redobraram a atenção dispensada aos pacientes. Apesar das dificuldades, encara com humor o período, que trouxe uma vantagem: os atrasos, comuns em consultas médicas, foram praticamente zerados sem o álibi dos fatores externos, como o trânsito ruim.
Pautas se repetem nos atendimentos
Enquanto cada psicanalistas adota regras e métodos particulares para migrar seu trabalho para o mundo virtual, os diálogos travados durante as sessões convergem para um ponto comum. Todos os entrevistados admitiram ter parte das sessões dedicadas exclusivamente ao coronavírus.
— Sempre surge esse assunto. As preocupações sociais vêm entrelaçadas com as questões de cada um, como o medo do desemprego. Vivemos um pouco isso com a polarização política no fim do período eleitoral, mas não com a intensidade que é hoje — avalia a psicanalista Luciana Wickert.
Uma revisão de vários estudos sobre o impacto psicológico da quarentena de síndrome respiratória aguda severa (sars), publicado em março, mostrou que o confinamento, a perda da rotina habitual e o contato social e físico reduzidos causaram angústia, frustração e sensação de isolamento às pessoas isoladas. Além disso, após a quarentena, houve um aumento de 31% nos casos de depressão e de 29% nos casos de estresse pós-traumático.
Na esteira da atual pandemia, o medo da morte, a preocupação com entes queridos e reflexões sobre limites e a finitude da vida têm sido temas recorrentes nos divãs virtuais. A sobrecarga imposta pela redescoberta das tarefas domésticas, agora conciliadas com o trabalho remoto, também costuma vir à tona.
Se por um lado o atual momento intensificou as angústias levadas para a análise, por outro, tem dado aos psicanalistas um de seus mais importantes subsídios de trabalho. Muitas pessoas têm relatado estarem sonhando mais durante a quarentena, relatando as experiências durante as consultas.
— Está todo mundo sonhando loucamente. Me surpreendeu a vivacidade e a força da produção de sonhos. Um típico que tenho tido e alguns pacientes também é que a gente sai de casa, ou recebe alguém em casa, burlando a pandemia. Tem sido uma forma de enriquecer a mesmice do cotidiano — diz Diana Corso.
Na psicanálise, os sonhos são onde habitam nossos medos e desejos, e sua interpretação pode ajudar no processo de autoconhecimento. Pesquisas apontam que em períodos traumáticos como apartheid, holocausto e regimes ditatoriais as pessoas sonham com mais intensidade e lembram de forma mais nítida do que sonharam.