O dilema economia versus saúde pública, que desafia governos sobre como agir em meio à pandemia do coronavírus, está perto de começar a ter respostas no Rio Grande do Sul. Um estudo inédito no mundo, encomendado por iniciativa do governo do Estado e coordenado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), responderá a questões como: qual é percentual de infectados no Estado? Quão rápido a infecção está se alastrando? Quantos contaminados não desenvolvem sintomas da covid-19? A partir disso, será possível estimar o número previsto de vítimas fatais. A iniciativa foi anunciada pelo governador Eduardo Leite na semana passada. A novidade neste domingo (29) é que o Ministério da Saúde quer ampliar o estudo para todo o país.
A expectativa dos pesquisadores é de que o trabalho no Estado tenha início nos próximos dias. Dois dias depois da primeira coleta de dados — que é a aplicação de testes para verificar a presença do coronavírus em 4,5 mil pessoas — já é possível entregar o primeiro relatório da prevalência da covid-19 na população gaúcha. A rapidez com que serão apresentados os primeiros resultados se explica pelo perfil do trabalho.
— Não é uma pesquisa para o mundo científico, apenas para publicar em periódico científico. É uma pesquisa que serve para a comunidade, para salvar vidas — explica o reitor da UFPel e coordenador geral do estudo, Pedro Curi Hallal.
Como o testes para o coronavírus ainda não estavam disponíveis, o começo do trabalho era incerto. Mas o MS também garantiu, neste domingo, que fornecerá 20 mil testes para a realização da pesquisa. O material faz parte de um lote de 5 milhões de testes que o ministério recebeu de doação da companhia Vale.
— Estamos apoiando este trabalho porque precisamos de dados independentes, tecnicamente bem embasados. O grupo de epidemiologia de Pelotas é nota 7 na Capes, a maior nota nos programas de pós-graduação em epidemiologia do Brasil, tem reconhecimento internacional, temos confiança total nos pesquisadores. Como temos pouco teste no Brasil, e estamos testando os sintomáticos e os graves, não vamos ter os dados da população. Para tomar medidas e decisões de políticas públicas precisamos de dados totalmente confiáveis. A pesquisa do Rio Grande do Sul será a fase 1 do inquérito nacional que eles vão realizar para o Ministério da Saúde. Eles vão produzir o conhecimento nacional da prevalência do coronavírus no Brasil — disse Erno Harzheim, secretário de Atenção Primária à Saúde do MS.
O estudo coordenado pela UFPel será o primeiro raio-x de como a infecção se comporta, revelando dados que podem embasar decisões do governador Leite para organização do sistema de saúde e a retomada de atividades econômicas, e, depois, para o cenário nacional.
— É um trabalho inovador no mundo. Não dá para tomar decisão que não seja baseada em dado científico, no achômetro, ou porque quer abrir tudo ou fechar tudo — destacou o governador ao falar da pesquisa.
O epidemiologista Hallal falou sobre o retorno das pessoas ao trabalho:
— O único meio seguro hoje de devolver as pessoas para o mercado de trabalho é testando em massa. Quem já tem anticorpos, volta. Se não fizer testagem em massa, não tiver o dado populacional, é uma irresponsabilidade levar as pessoas de volta ao trabalho. O resultado da pesquisa vai ajudar para fazer esse retorno gradativo da força de trabalho baseado em dado científico e não em questões ideológicas que dividem o país — destaca Hallal.
A pesquisa tem custo de R$ 1 milhão, fora os testes, que agora serão disponibilizados pelo MS. Serão submetidas ao exame rápido de coronavírus 18 mil pessoas. Os pesquisadores e o executivo estadual ainda buscam parceiros para financiar o projeto. Para bancar a primeira etapa de aplicação de exames, chamado o primeiro inquérito, tratativas com a Unimed Poa estão avançadas, conforme Hallal.
O estudo mostrará a prevalência populacional da infecção. Mas o que isso significa? O epidemiologista Aluisio Barros, que integra a equipe responsável pela metodologia do estudo, explica:
— Um estudo de prevalência na população testa uma amostra da população como um todo, como uma pesquisa em época de eleição tira uma amostra de eleitores. É feito o teste em quem foi selecionado de forma que se tem uma estimativa do percentual de pessoas na população que foram infectadas.
Outro dado importante que será conhecido a partir do levantamento é o da letalidade da covid-19.
— Em epidemiologia, a taxa de letalidade é calculada com o número de mortes entre os que ficaram doentes. A grande dificuldade em estimar a taxa de letalidade hoje é que não sabemos o real número de doentes, de infectados. Com o estudo indicando a prevalência da doença, é possível fazer uma projeção do número de infectados na população. O número de mortes a gente conhece com precisão razoável. Supondo que o estudo mostrasse uma prevalência de infecção de 10%, se poderia supor que há 1,1 milhão de infectados no Estado (que tem população de 11 milhões). Supondo ainda que houvesse 11 mil mortes, a taxa de letalidade calculada seria 0,01, ou seja, uma morte para cada 100 doentes — diz Barros.
A secretária de Planejamento, Orçamento e Gestão, Leany Lemos, explica como nasceu a iniciativa em busca desses dados inéditos e o que representa a pesquisa:
— O governador criou o comitê de dados, que coleta dados e realiza projeções e experimentos. A estratégia de testagem da SES terá os testes feitos nos hospitais e em profissionais que atuam na ponta, especialmente saúde e segurança, conforme protocolo da Secretaria. Teremos essa terceira linha, que será uma testagem amostral na população, que irá permitir identificar focos e fazer políticas de contenção. Estamos na trincheira vendo o Exército se aproximar. Temos de atrasá-lo para que o sistema não sobrecarregue. É uma estratégia inovadora no RS.
Quanto ao prazo para conclusão total do trabalho, a estimativa é de 45 dias. Diante da urgência de se ter respostas para o combate à pandemia, o coordenador do estudo, o epidemiologista Hallal, pondera:
— O intervalo de coleta a cada duas semanas é para se ter o entendimento de como a doença se comportou. Como pesquisador, também me dá uma angústia, queria coletar com intervalo menor, mas a gente não teria o quadro detalhado do que está sendo e de como foi a pandemia no Estado.
Além da UFPel, participam do trabalho outras universidades federais.
Como será feito o estudo
- O levantamento será feito nas oito regiões intermediárias do Rio Grande do Sul, segundo critério do IBGE: Pelotas, Santa Maria, Uruguaiana, Ijuí, Passo Fundo, Caxias do Sul, Santa Cruz do Sul/Lajeado e região metropolitana de Porto Alegre. O resultado que for encontrado, com uma margem de erro muito pequena, representará o resultado real que seria obtido se fosse possível investigar toda população do estado, mesma lógica da pesquisa eleitoral.
- A pesquisa incluirá quatro inquéritos populacionais (quatro etapas) realizados a cada duas semanas, em visitas domiciliares, quando os participantes serão submetidos a um teste rápido para o vírus da covid-19. A cada etapa, serão testadas novas pessoas.
- Ao todo, serão aplicados 18 mil testes — 4,5 mil por rodada de exames, com distribuição de quinhentos por cidade e um mil para a região metropolitana de Porto Alegre.
- Os kits de testes serão fornecidos pelo Ministério da Saúde.
O que o estudo responderá
- A três perguntas científicas prioritárias: qual percentual de infectados no Estado? Quão rápido a infecção está se alastrando por meio da comparação ao longo do tempo? Qual percentual de infectados que não desenvolvem sintomas?
- Com as respostas sustentadas por dados reais, será possível avançar para mais três questões: qual a letalidade real da doença, ou seja, do total de pessoas que pegam o vírus, quantas vão morrer? Qual percentual dos infectados que vai precisar de atenção hospitalar importante, com internação em UTI e uso de respiradores?
- Fornecerá informações para discussão e decisão sobre o isolamento