Assim que for aprovado no país, o plantio de maconha deverá ocorrer em locais fechados e cujo acesso será controlado por portas de segurança e com uso de biometria. Empresas também terão que apresentar planos de segurança e serão alvo de inspeções periódicas. As medidas fazem parte de uma proposta que foi apresentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na manhã desta terça-feira (11) para tentar liberar o cultivo da Cannabis no país com foco na pesquisa e a produção de medicamentos. Aprovado pela diretoria colegiada no começo desta tarde, o projeto segue para consulta pública por 60 dias.
Atualmente, o plantio de maconha é proibido no país. Desde 2006, no entanto, a lei 11.343 prevê a possibilidade de que a União autorize o plantio para fins medicinais e científicos em local e prazo predeterminados e mediante fiscalização". A iniciativa de propor regras para o plantio da Cannabis, assim, representa uma primeira tentativa da agência em regular o tema, o que deve aumentar o espaço para uso medicinal da maconha no país.
Consultada por GaúchaZH, a Anvisa destacou que a consulta pública "é um mecanismo de participação social com o objetivo de colher dados adicionais e novas informações que não tenham sido identificadas pela Anvisa".
Como vai funcionar?
Para ter o cultivo liberado, cada empresa deverá apresentar um plano de segurança com medidas para evitar desvios. O aval também será condicionado à análise de antecedentes criminais de responsáveis técnicos e diretores por órgãos policiais.
O plantio deverá obedecer a regras específicas e ser realizado em locais fechados e não identificados, vedados por dupla porta com sistema de travamento e protegidos por alarmes e sistemas de segurança. O acesso deverá ser controlado por meio de biometria.
Também haverá cotas de cultivo por tipo de planta, as quais serão definidas em conjunto com a equipe técnica da agência, em modelo semelhante ao adotado hoje pelo Canadá. Os limites ainda não foram definidos.
As plantas poderão ser cultivadas para pesquisa e produção de remédios pela própria empresa ou serem vendidas para instituições de pesquisa, fabricantes de insumos farmacêuticos e laboratórios que fazem medicamentos. Será vedada a possibilidade de venda a pessoas físicas e farmácias de manipulação. Na prática, a proposta indica que a medida poderá fazer surgir um novo mercado de produção de Cannabis no país para a área farmacêutica, embora restrito a alguns setores.
Permissão restrita às empresas
Desde 2015, a Anvisa autoriza pedidos para importação de óleos e medicamentos à base principalmente de canabidiol substância da maconha que tem alguns efeitos terapêuticos e não é psicoativa, ou seja, não dá "barato".
Ao todo, 6.789 pacientes já obtiveram o aval para importar esses produtos, o qual é condicionado a documentos e laudos médicos. As doenças mais frequentemente tratadas são epilepsia, autismo, dor crônica, doença de Parkinson e alguns tipos de câncer.
O problema é que, por serem feitos no Exterior, não há controle de qualidade da produção e os custos são altos. Em alguns casos, um tratamento por três meses fica em torno de R$ 2 mil, o que tem feito crescerem as ações judiciais para que planos de saúde e no SUS forneçam os produtos.
Ao mesmo tempo, o Brasil tem apenas um medicamento registrado à base da planta. O produto, chamado de Mevatyl, é composto por THC e canabidiol e indicado para casos de espasmos ligados à esclerose múltipla. Além do uso restrito, o preço também é considerado alto: em torno de R$ 2,6 mil a embalagem.
Para o presidente da Anvisa, William Dib, a liberação do cultivo por empresas pode dar impulso à produção novos medicamentos e reduzir o preço desses produtos.
— Fazendo essas duas regulações, a população vai ter acesso a um remédio mais seguro, de melhor qualidade e a preço menor do que hoje — disse à Folha na última semana.
Ele defende que a função de regular o tema pertence à agência.
— É a Anvisa que tem que aguentar 9 mil pedidos de Cannabis medicinal e que vê pai chorar porque dizem que demoramos 40 dias para liberar a [autorização para importar].
Se por um lado a medida poderá abrir um novo setor para as empresas, a iniciativa deve frustrar associações de pacientes, que pleiteiam o aval para cultivar a planta e produzir extratos por conta própria, possibilidade praticamente excluída da proposta da agência devido aos requisitos técnicos exigidos.
Agência quer apressar aval
Além das normas para liberação de cultivo, a Anvisa irá abrir consulta pública para criar novas regras para liberação de remédios à base da Cannabis. A ideia, segundo a agência, é que haja um modelo de registro acelerado para doenças graves em que houver ameaça à vida e que não haja outras alternativas terapêuticas.
Neste caso, o projeto prevê que empresas possam apresentar o pedido de registro, nome dado à etapa que autoriza a venda de remédios no mercado, antes mesmo da conclusão da última fase de estudos clínicos.
Em contrapartida, haveria necessidade de que os estudos anteriores apontem eficácia e comprovem segurança no uso do produto. Também deve haver cobrança de um plano de monitoramento e apresentação de dados posteriores. O tempo do registro, no entanto, seria válido por tempo menor: três anos. Hoje, cada registro de medicamento dura até cinco anos.
Entre as doenças que podem entrar nesta regra, de acordo com a agência, estão casos como dores crônicas por câncer e esclerose múltipla, por exemplo. Não haverá, porém, uma lista definida -o que pode abrir espaço para que empresas o processo para outros casos.
Aprovado, o medicamento deve ser vendido com cobrança de receita médica --como é hoje para antibióticos, por exemplo. A definição de tarja será feita para cada produto, que deve ser vendido em cápsula, comprimido, óleo e outros formatos --mas somente para uso oral.
—Precisa ficar claro o seguinte: não estamos liberando a Cannabis, mas liberando medicamentos à base de Cannabis — afirmou Dib à Folha.
— Ah, mas cigarro [de maconha] é bom para cefaleia [dor de cabeça].' Não pode. Essa forma de administração não vai existir. Se quiser xampu à base de Cannabis, também não terá.
Discussão movimenta setor
A discussão sobre a possibilidade da Anvisa dar aval ao cultivo de maconha movimenta entidades de pacientes e representantes de empresas desde 2017. De acordo com Flávio Schumacher, advogado especialista em Direito Médico, a abertura para consulta pública ocorre como resposta aos processos judiciais feitos por famílias de todo o Brasil solicitando autorização para plantar maconha e produzir remédios como forma de tratar doenças graves.
Naquele ano, o então diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, chegou a declarar que a agência pretendia apresentar uma proposta de regulamentação sobre o tema no mesmo ano, o que trouxe expectativa entre empresas. Dois anos se passaram, e nada ocorreu.
À Folha, Dib admite que o tabu em torno do tema acabou atrasando o processo. Outro fator, diz, foi assegurar a segurança e evitar que a proposta fosse desvirtuada para outros fins que não o uso medicinal. Apesar da avaliação de que o processo está mais seguro, o tema ainda deve gerar atrito com o governo, que tem adotado postura mais rígida em relação às drogas.
No último 15 de abril, por exemplo, a 4ª Vara Criminal de Canoas autorizou um casal a plantar maconha para preparar um remédio feito à base de canabidiol, um princípio ativo da Cannabis. O medicamento seria usado para tratar a síndrome de Dravet da filha de nove anos, que sofria de graves crises de epilepsia. Schumacher diz que a Anvisa criou em 2017 um grupo de discussão sobre o assunto e agora, dois anos depois, abre o debate para a população.
— Obviamente, associações envolvidas com o assunto, sobretudo as famílias interessadas, irão contribuir. E já há críticas, sobretudo porque essas associações acreditam que as regras da Anvisa irão encarecer o tratamento, por permitir apenas que grandes empresas consigam fazê-lo — diz o advogado.
No último mês, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, disse em rede social que a Anvisa era "irresponsável" por querer liberar o plantio de Cannabis no Brasil: "Contra a lei, contra as evidências científicas e contra o Congresso e o Governo brasileiro!".
A posição foi defendida pelo Conselho Federal de Medicina, para quem ainda não há evidências consistentes de eficácia e segurança do uso de alguns canabinoides -desde 2014, o conselho, porém, autoriza que médicos prescrevam o canabidiol para crianças e adolescentes com epilepsia.
Em resposta, Dib diz que o receio é por achar que o acesso para uso medicinal seria à planta, o que é vetado na proposta.
— A hora que entenderem o projeto, o número de pessoas que serão contrárias vai ser bastante reduzido. Ele trata única e especificamente de medicamentos — diz.
— Se o governo um dia quiser liberar a Cannabis, o ópio, a coca, isso é problema de governo, não é problema da Anvisa.
Como funciona uma consulta pública?
A consulta pública é um prazo no qual a Anvisa está aberta a sugestões dos brasileiros sobre algo que a instiuição quer implementar como mudança. Na prática, a Anvisa publica no site um documento modelo que trará as regras para o plantio de maconha para uso medicinal e para a produção de remédios com base em maconha. A partir daí, a população tem 60 dias para dar sugestões (por meio de formulários no próprio site) de pontos que devem ser acrescentados ou modificados na proposta.
Depois que a consulta pública é fechada, a Anvisa consolida os dados. Em seguida, o órgão pode abrir uma audiência pública presencial para que a população discuta com servidores da própria Anvisa (em geral, em Brasília). Os dados são mais uma vez consolidados e repassados para os diretores da Anvisa, que a partir daí tomam uma decisão, chamada de Resolução da Diretoria Colegiada, com força de lei.
A consulta pública já está aberta?
Ainda não. A Anvisa precisa publicar a consulta no Diário Oficial da União, o que deve ocorrer na semana que vem, segundo o órgão informou a GaúchaZH. A partir dessa data é que a consulta estará aberta e os 60 dias serão contados. A Anvisa, no entanto, quer finalizar a discussão ainda em 2019.
A decisão passa por outro órgão além da Anvisa?
Não. A decisão é da Anvisa porque cabe a ela analisar questões refentes à aprovação e produção de um remédio. Em suma, o tema é uma regulação de questão medicinal – a Cannabis é encarada como remédio, e não como droga. O tema, neste caso, não passa pelo Congresso.