Depois de a filha se submeter a quase três dezenas de intervenções cirúrgicas, a dona de casa Tieli Martins Silbershlach e o borracheiro Marcos Renato dos Santos Cézar, ambos de 32 anos, têm vivido o que mais se aproxima, até agora, de uma rotina de relativa normalidade. Há seis meses, Bianca Vitória recebeu alta da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, após uma operação de alta complexidade envolvendo a cabeça e o coração. Ela sofre de microcefalia (o cérebro é menor do que o normal) e hidrocefalia (há acúmulo de líquido no crânio, impedindo o desenvolvimento cerebral), condições que podem surgir durante a gestação ou após o parto, e apresenta uma série de problemas de desenvolvimento.
A história da menina de dois anos e três meses ficou tristemente conhecida quando detalhes de seu nascimento vieram a público, em setembro do ano passado, em um dos momentos em que o quadro da criança se agravou. Em 6 de fevereiro de 2017, no Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), na sequência de uma cesárea de urgência devido a complicações da hipertensão da gestante, Bianca sofreu uma parada cardíaca e não reagiu às manobras de reanimação, sendo considerada natimorta. Horas depois, uma enfermeira que passava pelo setor de descarte percebeu que a recém-nascida ainda respirava. Começava ali o drama do casal, que anseia pela responsabilização dos culpados.
Nesta terça-feira (21), Tieli e Marcos conversaram com a reportagem ao deixar o Hospital Conceição, na Capital, onde Bianca passou por audiometria e avaliação dos aparelhos auditivos — ela sofre de surdez classificada entre moderada e profunda. Ainda que o meio ano sem internações seja comemorado pelos pais, o dia a dia da família é repleto de consultas e exames. Recentemente, Tieli e Marcos ingressaram com uma ação na Justiça Federal contra o Estado e a União, pleiteando sessões de fisioterapia, fonoterapia e terapia ocupacional em maior número e em regime domiciliar, o que evitaria terem de se deslocar com a menina quando está frio e chovendo. Em dias de tempo feio, Bianca acaba faltando.
— Estou muito preocupada com o inverno. Se ela pega uma pneumonia... — angustia-se a mãe.
Bianca é transportada em uma cadeira de rodas, doada pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). É incapaz de andar, sentar-se, falar, pegar os brinquedos com as mãos. Toma leite de fórmula especial fornecido pelo Estado e come papinhas, sem ingredientes sólidos. Os pais contam que ela está mais atenta e, por vezes, até atende pelo nome.
— Bibi? Bibi? — chama Tieli, agachada ao lado da cadeira, fazendo um teste.
Bianca não reage, mantendo o olhar distante, mas a dona de casa garante que muitas vezes tem resposta:
— Se a gente insistir, ela olha. Ou a gente nota que ela ouviu a gente falar.
Quando é colocada bem perto da televisão, Bianca parece prestar atenção ao colorido dos desenhos animados. As crises de choro e irritação que duravam horas — a mãe precisava segurar as mãos da caçula, evitando que ela se arranhasse — cederam lugar a noites mais tranquilas de sono. Antes eram oito medicamentos diários, quantidade agora reduzida para dois. Quanto às finanças, a situação está um pouco melhor. Marcos aos poucos tenta recuperar a clientela perdida. Como trabalha sozinho, tem de fechar a borracharia se precisa viajar a Porto Alegre com a esposa e a filha ou abrir as portas mais tarde quando as leva para os compromissos médicos nas primeiras horas da manhã. Há dias em que não aparece um único cliente.
— Se a pessoa vai uma vez e está fechado, vai duas e está fechado, na terceira, ela não vai mais. Diminuiu bastante o volume de trabalho, mas agora está melhorando. Para mim, é ela em primeiro lugar. Largo tudo – diz Marcos.
Como está a investigação sobre o caso
Depois de tomar depoimentos da equipe responsável pelo parto, a Comissão de Análise de Óbitos e Biópsias e o Comitê de Ética do HUSM concluíram, em outubro, que não houve erros aparentes na conduta de médicos e enfermeiros. Os procedimentos para reanimação foram considerados corretos, e a "ressuscitação" pode ter ocorrido devido ao efeito de drogas usadas nas tentativas de restabelecer o batimento cardíaco.
Enviado ao Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers), o relatório motivou a abertura de uma sindicância e, posteriormente, de um processo ético-profissional. De acordo com a diretoria da entidade, o caso, que corre em sigilo, deverá ser avaliado pelos próximos meses. Se os médicos envolvidos forem considerados culpados, as penas podem variar desde advertência até cassação do registro profissional.
Remetida da Polícia Civil para a Polícia Federal (PF), já que ocorreu em uma instituição federal, a investigação segue em andamento. Tiago Welfer, delegado da PF em Santa Maria, informa que estão sendo tomados os últimos depoimentos — no total, cerca de 30 pessoas foram ouvidas.
Além da ação que requisita as sessões de terapias, a família de Bianca propôs, também na Justiça Federal, uma ação cível de indenização por danos morais e materiais — um perito neurologista foi designado, mas ainda não há data para o início do trabalho. Ania Kliemann, uma das advogadas responsáveis pelo caso, acredita que o processo deva levar ainda muito tempo para chegar a uma conclusão.
— Como mãe dela, me sinto muito feliz por tê-la na nossa vida. Mas me sinto triste por toda essa injustiça. Aconteceu tudo o que aconteceu e ninguém foi responsabilizado. É muita burocracia para ela ter um mínimo de dignidade. Ainda está faltando muita coisa. Se ela não tivesse essa doença, já estaria falando "mamãe" — lamenta Tieli, chorando.