Com sérios impactos já sentidos em hospitais filantrópicos e santas casas, a crise nas finanças da saúde pública do Rio Grande do Sul começa a trazer efeitos graves aos municípios gaúchos. Segundo a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), o Estado deve R$ 500 milhões em repasses às prefeituras, recursos destinados à contrapartida do governo gaúcho para programas como Estratégia de Saúde da Família, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Farmácias Municipais.
Deste montante, há quantias atrasadas desde o governo Tarso Genro e que foram herdadas por José Ivo Sartori. No começo da atual gestão, em janeiro de 2015, os valores chegaram a ser renegociados e parcelados, mas, como já opera em déficit, o governo nunca conseguiu honrar o pagamento integral das parcelas. A bola de neve atinge a população dos municípios que já restringem atendimentos e reavaliam a continuidade de serviços.
Alarmado com a situação, o Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul (Cosems-RS) enviou, na terça-feira (27), uma carta aberta à população para alertar sobre o risco iminente de paralisação geral dos serviços médicos no Estado. No mesmo dia, secretários de Saúde de diversos municípios se reuniram na Capital para tratar do assunto. O grupo entregou uma carta com pedido de socorro ao Ministério Público, que, por sua vez, solicitou ao conselho a criação de um comitê de crise para monitorar, cidade por cidade, como estão os efeitos da paralisação dos hospitais – são ao menos 16 em todo Estado – e dos demais serviços de saúde.
— Chegamos ao ponto mais crítico.
Nesse momento, os prefeitos têm de pagar 13º salário, férias, e os hospitais estão fechando. O caos não é só do Estado, chegou aos municípios, que arrecadam cada vez menos. Queremos que o MP nos dê garantia de que o Estado vai empenhar e reconhecer essa dívida. Também vamos pedir (ao governo do RS) um plano emergencial para que os hospitais não fechem em cadeia e não se tenha um colapso completo no final do ano – avalia o presidente do Cosems-RS, Diego Espíndola.
O Ministério Público informou que fará parte do comitê de crise para tentar resolver o problema sem entrar com ação judicial. O assunto é acompanhado pela promotora Liliane Dreyer.
Espíndola reconhece que, embora o total da dívida seja muito maior, os secretários pedirão prioridade ao pagamento a hospitais – cujo valor devido pelo Estado chega a R$ 210 milhões hoje, referente ao atraso de parcelas de R$ 70 milhões de agosto, setembro e outubro.
Na disputa entre hospitais e municípios por recursos, as instituições de saúde normalmente saem na frente por estarem mais próximas da população. Secretário do governo Sartori até abril, João Gabbardo explica que, com a falta de dinheiro, ao fim de cada mês, o dilema se repete:
— A saúde tem três despesas principais: remédios, repasse aos municípios e hospitais. A tendência é sempre quitar primeiro os hospitais em detrimento dos municípios.
Além disso, com a saída dos médicos cubanos do programa do governo federal Mais Médicos, muitas unidades de saúde estão sendo fechadas porque ainda não receberam profissionais para substituí-los. Pacientes da atenção básica passam a procurar o pronto-atendimento e hospitais.
Coordenador-geral da Famurs, Darci Lauermann lembra que os atrasos em repasses aos municípios começaram em 2009 e se agravaram a partir de 2013 e 2014. Todos os meses, R$ 42 milhões do Estado são divididos entre os 497 municípios gaúchos. É como se 12 parcelas estivessem em atraso ao longo de cinco anos. Na prática, cada governador vai pagando um pouco e deixando de pagar uma parte, diz Lauermann:
— Todo governador recebe essa herança maldita. E além de não conseguir pagar inteiramente o débito recebido, aglutina o passivo dele mesmo. Com o governo Sartori, foi o que ocorreu. Tem se tornado rotina.
A exemplo de Sartori, Eduardo Leite também receberá uma dívida volumosa e, provavelmente, muito maior do que a do seu antecessor. O atual secretário de Saúde Francisco Paz, entretanto, ainda não sabe precisar os valores que ficarão para a próxima gestão quitar. Coordenador da transição do governo Leite, Lucas Redecker assegura que o governador eleito reconhecerá a dívida com municípios e hospitais. Segundo ele, não só para recuperar as contas da saúde, mas para reaver o fôlego do Tesouro do Estado como um todo. Assim que a próxima gestão assumir, a equipe de Leite dará início a uma reforma da estrutura do Estado, que envolve a venda de estatais, a renovação das alíquotas do ICMS e a revisão dos planos de carreira, em diálogo com as categorias dos servidores.
— Sabemos que vamos começar com muitos problemas e que não será no primeiro dia que iremos resolvê-los, mas nosso objetivo é promover uma reforma que estanque o déficit nas contas – afirma Redecker.
Segundo monitoramento do Cosems-RS, os municípios afetados pelo atraso dos repasses de verbas com maior reflexo na desassistência de serviços são Sapucaia do Sul, Viamão, Caxias do Sul, Santa Maria, Montenegro, Canoas, Uruguaiana e Bagé. Alumas cidades sequer informam os procedimentos que estão sendo interrompidos por temor do impacto político que isso possa gerar.
Na avaliação de Lauermann, até o momento, não existem mais municípios em situação emergencial porque os prefeitos utilizam recursos livres para aplicar na saúde:
— Os prefeitos não têm outra alternativa porque a saúde tem reflexo direto e impacto político muito grande. Aos olhos da população, se o hospital atende mal, a culpa é do prefeito.
UPA só para emergências em Cruz Alta
Em Cruz Alta, a situação agravada pela restrição de cirurgias e internações eletivas no Hospital São Vicente de Paulo fica ainda mais crítica com a limitação de atendimento da UPA 24h. Da mesma forma que o hospital, está atendendo apenas urgências e emergência. Os funcionários da empresa Salus e Salutis, responsável pela administração da UPA, entraram em greve em 12 de novembro porque não receberam parte dos salários de setembro e a integralidade dos vencimentos de outubro.
— Chega muita gente e vai embora sem atendimento. Se não tiver ao menos febre, não é atendido — explicou um funcionário em greve, que não quis se identificar.
Já os servidores da prefeitura estão com o pagamento de horas extras atrasado, e os salários são quitados com cinco dias de atraso. Cargos de confiança e profissionais contratados recebem apenas no dia 20. Para pagar o 13º salário do funcionalismo, a prefeitura recorrerá a um empréstimo junto ao Banrisul.
No terceiro mandato como prefeito, Vilson Roberto Bastos dos Santos afirma que Cruz Alta vive sua pior crise na saúde.
O Estado deve R$ 1,3 milhão em repasses ao município. Deste valor, apenas para UPA, o Piratini tem atrasado R$ 200 mil, e a prefeitura, outros R$ 500 mil. No final da semana, a prefeitura chegou a encaminhar R$ 100 mil para a UPA, mas só foi possível colocar em dia os salários dos médicos.
Tendo em vista a restrição de atendimentos na UPA e temendo o não repasse dos Estado aos hospitais, Santos trabalha para contratar uma UTI Móvel para encaminhar pacientes até os hospitais regionais mais próximos de Cruz Alta.