Tradicional bairro de Porto Alegre, o Bom Fim parece uma cidade dentro de outra. Concentra livrarias, cafés, padarias, restaurantes e bares, onde reúne-se um público diversificado. Já virou letra de música, foi retratado em filmes, livros e abrigou calorosos debates políticos nas décadas passadas. Agora, vive um processo de renascimento, depois de uma enchente recente e de uma já mais distante pandemia, igualmente devastadoras para a vida social e econômica do Estado e do país, com inevitáveis impactos locais.
Conforme dados da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (SMDET), nos últimos cinco anos, o número de estabelecimentos abertos no Bom Fim mais do que dobrou. Em 2019, eram 1.198. Atualmente, são 2.774, o que representa crescimento de 131,55%. De janeiro até agora, foram inaugurados 206 empreendimentos no bairro, sendo 11 no segmento da gastronomia.
Conhecido no passado como Campo da Várzea, teve o nome trocado para Campo do Bom Fim com a construção da Capela Senhor do Bom Fim. As famílias judaicas que se instalaram nas imediações da então Avenida Bom Fim, atualmente Osvaldo Aranha, começaram a chegar na segunda década do século 20.
A linha de delimitação geográfica do Bom Fim parte da Avenida Osvaldo Aranha, esquina com a Rua Sarmento Leite, em direção à Irmão José Otão. A partir desse encontro, atravessa alguns quarteirões até chegar na Castro Alves. Na sequência, cruza com a Ramiro Barcelos, desce e se encontra novamente com a Osvaldo Aranha, para retornar ao ponto inicial. Oficialmente, o Parque Farroupilha (Redenção), o Auditório Araújo Vianna, o Hospital de Pronto Socorro e até o Brique não ficam no bairro.
Efervescência na década de 1980
Os anos 1980 foram efervescentes no bairro. Em dezembro de 1980, o Ocidente foi inaugurado. A Lancheria do Parque começaria a funcionar dois anos mais tarde. Em 1983, o Bar Lola virou o local de encontro dos frequentadores do Bom Fim. O Alaska, um clássico da região desde os anos 1960, encerrou atividades em agosto de 1985.
Em 1988, um garçom da Lancheria da Redenção foi assassinado. Na época, o crime acarretou no fechamento dos bares à meia-noite, nos dias de semana, e às 2h aos sábados e domingos. No mesmo ano, o Cine Bristol fechou as portas. No ano posterior, em junho, a Brigada Militar entrou no Ocidente e levou cem jovens detidos em camburões até o Palácio da Polícia. Em julho daquele mesmo ano, artistas gaúchos promoveram show no Araújo Vianna em repúdio ao ocorrido no Ocidente. O movimento foi chamado de Bom Fim-Pequim. Isso tudo aconteceu apenas na década referida.
A publicitária Jacqueline Glat, 38 anos, vive desde 2004 no bairro e diz conhecê-lo em detalhes. O perfil Bom do Bom Fim, criado por ela com o objetivo de dar dicas sobre a região, tem 33 mil seguidores no Instagram.
— Quando a gente fala de renascimento do Bom Fim e compara com essa época (anos 1980), acho que ele saiu de moda, ficou um pouco mais vazio e voltou. Quando se faz uma comparação mais recente, dá para ver que esse renascimento foi uma coisa mais devagar — opina, destacando que considerava haver poucos lugares interessantes para se conhecer até 2018.
Jacqueline observa atualmente a presença de pessoas vindas da Cidade Baixa, de órfãos da Padre Chagas, no Moinhos de Vento, que já não reúne mais público como antes, e até de gente que começou a sair apenas no pós-pandemia e optou pelo Bom Fim. A proximidade com o Rio Branco, cita, faz com que os jovens se desloquem naturalmente entre os bairros vizinhos.
A publicitária ressalta a inauguração do Brasco, na esquina da Rua Fernandes Vieira com a Vasco da Gama, como um dos marcos da transformação do Bom Fim. Segundo ela, a partir de então, o bairro assumiu uma vida mais diurna e não apenas noturna.
Antes, a sensação era de que o bairro era muito mais noturno com uma vida mais boêmia. No pós-pandemia, o Brasco trouxe um agito para o dia no bairro
JACQUELINE GLAT
Publicitária, criadora do Bom do Bom Fim
Isso porque o Brasco atrai frequentadores nos três turnos do dia. Com mesas e cadeiras na calçada, é um convite para um café, um bate-papo ou uma paquera. O ponto onde fica situado foi alugado por dois sócios em 2019. Em março de 2020, o estouro da pandemia de covid-19 adiou os planos de inauguração para novembro daquele ano.
Novas propostas para antigos espaços
Antes da abertura, os arquitetos responsáveis pela obra no Brasco chegaram a morar alguns dias no Bom Fim para entender como o público se comunicava com a fachada dos prédios. Os dois sócios passaram semanas sentados na esquina antes de investir no ponto.
— Contabilizamos quantas pessoas passavam, quantos idosos, crianças e pessoal de mochila, para saber quanto seria o faturamento e o fluxo. A base é olhar para os dados e entender de que o bairro necessita — revela Arthur Bolacell, 33, natural de São Luiz Gonzaga, nas Missões.
Bolacell e Gabriel Drumond de Moraes, 32, natural de Uruguaiana, na Fronteira Oeste, se conheceram em 2009, quando estudavam Administração na ESPM, na Capital. Insatisfeitos no estágio, decidiram abrir uma unidade do Brasco na Rua Florêncio Ygartua, no Moinhos de Vento. Mas Moraes, que vivia no Bom Fim, sonhava em abrir um negócio na região.
Os dois conheciam o proprietário da Espaço Vídeo, videolocadora que ficou mais de três décadas no atual endereço do Brasco e fechou em 2018. Na sequência, o local foi ocupado pela rede espanhola de supermercados Dia, que durou apenas 10 meses no local.
— Na nossa pesquisa, chegamos à conclusão de que o Bom Fim é tipo uma cidade do interior dentro de uma grande capital. Porque as pessoas que moram fazem tudo aqui — afirma Moraes.
Os sócios destacam a presença de turistas, como alemães e ingleses, circulando pelo Bom Fim, além de uma migração dos frequentadores da Rua João Telles no turno da noite em direção ao Rio Branco.
— Temos sorte de pegar um ponto que é muito icônico e tinha um apelo sentimental com as pessoas — recorda Bolacell.
Localizado na Vasco da Gama, outro empreendimento recente é a Casa Vasco, inaugurada em agosto de 2023. Instalada em um imóvel dos anos 1950, o local é um armazém de bebidas, bar e café. O projeto é das irmãs Larissa Martins Nunes Teixeira, 36, e Carolina Martins Nunes Teixeira, 34. Uma é mestre destiladora da cachaça, a outra, sommelier de vinhos.
— A gente sempre enxergou o Bom Fim como um local eclético. Tem uma mistura do residencial com o boêmio. As pessoas caminham bastante por aqui e consomem no próprio bairro. Era o nosso objetivo: um público eclético e consumista daqui — explica Carolina.
— Temos muitos clientes que vêm da Região Metropolitana para passar o final de semana e curtir os nossos vinhos e gastronomia — acrescenta Larissa.
Operação que reúne estabelecimentos como pizzaria, sorveteria, chope e até café da manhã, a Alameda 518 é uma das recentes novidades do Bom Fim. Foi inaugurada em 2022 e fica na Rua Fernandes Vieira. Lembra uma ruela ou beco saído de algum cenário italiano.
Em junho de 2023, o empresário João Samuel Zaffari, 30, abriu a Gelateria Gianluca Zaffari em um dos espaços da Alameda 518.
— São poucos bairros em Porto Alegre que as pessoas se sentem à vontade em caminhar, descem dos apartamentos, vêm aos restaurantes e passeiam pelo Bom Fim. É um bairro plano, tem um público jovem e outro mais tradicional do bairro que já era nosso cliente e nos queria mais perto — contextualiza.
O período posterior à pandemia da covid-19 é mencionado pelo empresário como um fator importante neste processo de escolha pelo bairro.
Entendemos que o pós-pandemia gerou algumas mudanças na cidade. Ruas que eram tradicionais deixaram de ser, outras se criaram. As grandes lojas do Bom Fim se mantiveram e junto disso novos operadores entraram trazendo novos mix de produtos.
JOÃO SAMUEL ZAFFARI
Proprietário da Gelateria Gianluca Zaffari
Com menu inspirado na culinária hispano-argentina, o Zanza, situado na Rua Vasco da Gama, vai completar dois anos no próximo mês. A proprietária Laura Matiotti, 31, está tão satisfeita com o resultado que pretende abrir outro restaurante, mais informal e voltado para a gastronomia italiana, na parte de trás do estabelecimento.
— Eu sou do interior e meu pai morava aqui. Era um bairro que eu já tinha familiaridade. Minha escolha foi por ser um bairro com muita vida. Tem feiras e as pessoas gostam de caminhar. Historicamente é um bairro muito acolhedor. É central e conecta muitos pontos da cidade — detalha.
Sobre o renascimento do Bom Fim, Laura pontua o cenário no Quarto Distrito, severamente impactado na enchente de maio:
— Conheço muitos (donos de) restaurantes que foram atingidos no Quarto Distrito e querem ir para o Bom Fim. Os donos me ligam e dizem que querem ir para o Bom Fim.
Um bairro "vibrante", "acolhedor" e "autêntico"
O carinho pelo bairro e a percepção de que ele vive uma nova era de revitalização está em cada fala de quem mora ou frequenta a região. A aposentada Berenice Mércio Pereira, 77, vive no Bom Fim há 25 anos e ressalta a grande oferta de atrativos do bairro:
— São opções para todos os tipos de pessoas, faixas etárias, interesses e gostos. Depois da pandemia, houve um renascimento em todo o Bom Fim. Convivo com isso diariamente e acho que é uma vida muito alegre. O bairro está vibrante.
A arquiteta Karina Bouyrie, 29, natural de Nova Prata, vive há 10 anos no bairro. Elenca a segurança e o ar familiar da região como características que a fazem se sentir acolhida.
A vida está mais ativa aqui, com mais bares e restaurantes. E vejo um tipo de movimento bacana: pessoas legais que trazem segurança para o bairro.
KARINA BOUYRIE
Arquiteta
Até quem frequentava o Bom Fim há décadas e saiu por algum motivo gosta de voltar de vez em quando. É o caso da arquiteta Joana Soares, 48, que fazia um lanche com o filho Tiago Soares, 19.
— Eu sou de Porto Alegre, mas há 20 anos moro em Canela. Agora, o Tiago veio estudar na UFRGS. Estou voltando a frequentar Porto Alegre e o Bom Fim — comenta, dizendo que antigamente costumava almoçar no Ocidente.
A artista visual Marion Velasco, 64, vive desde o nove anos de idade no Bom Fim. Testemunhou várias épocas e transformações do local. Sentada em um estabelecimento do bairro ao lado da amiga e professora da UFRGS Elaine Tedesco, 60, conta que assistiu a grandes shows do final dos anos 1970, na Reitoria da UFRGS. Nos anos posteriores, começou a frequentar os bares da Avenida Osvaldo Aranha e o Ocidente, na João Telles. Agora, percebe a abertura de novas opções, como padarias artesanais e barzinhos.
— Tem locais que são ícones como o Café Cantante, o Ocidente, os bares da João Telles, como o Odessa. São esses e os novos, que ficam nas ruas e têm parklets (estruturas geralmente feitas de madeira para sentar) e estão trazendo outros públicos. Os empreendedores novos estão apostando nesse público jovem e nessa mistura de ambientes com várias opções — ilustra.
O ator e empresário Vinícius Terres, 28, vive no Bom Fim há três anos e já se considera um "bonfiner". Ele compartilha que tudo pode ser feito dentro do bairro sem a necessidade de se deslocar para outras partes da Capital.
Tenho certeza de que o bairro se transformou visualmente com os novos empreendimentos. Meus restaurantes favoritos da cidade estão no Bom Fim ou na divisa com outros bairros. E é muito bom ver a movimentação. Ao mesmo tempo, o bairro não perde a sua característica.
VINÍCIUS TERRES
Ator e empresário
Procura por venda e locação de imóveis
O Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis (Secovi-RS) traz dados sobre o interesse pelo bairro. No ramo de imóveis residenciais, o preço médio do metro quadrado para venda aumentou 11,46% nos últimos 12 meses, e 9,79% nos últimos cinco anos.
Na oferta de unidades para locação, o preço médio do metro quadrado avançou 28,91% nos últimos 12 meses, e 42,92% nos últimos cinco anos. Como houve redução da oferta, isso pode indicar que imóveis de menor valor foram locados e alguns com maior valor ainda permanecem em oferta.
Em relação ao mercado de locações de salas e lojas, o número de ofertas comerciais se manteve praticamente inalterado nos últimos três anos. Nos últimos 12 meses, houve uma diminuição de salas e um aumento na quantidade amostral de lojas disponíveis para locação no bairro.
Nos preços médios por metro quadrado, o tipo loja apresentou um aumento de 46,7% em cinco anos, e de 7,66% nos últimos 12 meses. Já salas/conjuntos, em 12 meses, tiveram aumento de 17,82%. E, em cinco anos, de apenas 1,56%.
Por sua vez, imóveis comerciais vendidos no bairro Bom Fim em agosto de 2024 se sobressaíram em relação ao mesmo mês dos últimos seis anos, com nove unidades comerciais vendidas.